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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

A longa caminhada

O paraíso perdido diante do capitalismo

No mundo capitalista, dominado pelo imperialismo cultural estadunidense, poucos filmes, fora do veio principal do mercado, terminam conhecidos pelo grande público; na maioria das vezes, trata-se de fazer circular, apenas, obras produzidas nos Estados Unidos, com validação da ideologia burguesa e, não raramente, depreciando as demais culturas e formas de vida, haja vista os modos desdenhosos do cinema dos Estados Unidos se referir aos povos árabes, latinos ou africanos, aos russos e aos chineses. Por decorrência, poucos filmes de outras culturas são reconhecidos; poucos se inteiram, inclusive nos próprios países de origem, do cinema indiano, brasileiro, mexicano… do cinema australiano, a versão original de “Mad Max”, 1979, de George Miller, com Mel Gibson, talvez seja uma das poucas a se celebrizar no cinema mundial.

Recentemente, tive o prazer de assistir a “A longa caminhada”, 1970, de Nicolas Roeg, outro filme australiano, bem mais complexo do que as desventuras de policiais corruptos e idiotas, perseguindo e sendo perseguidos por gangs, formadas por vagabundos corruptos e idiotas. No filme de Roeg, um pai de família, acompanhado do filho, ainda criança, e da filha, já adolescente, após parar o carro inexplicavelmente no meio da estrada, cruzando a paisagem desértica do país, saca um revólver, disparando cinco tiros contra ambos, antes de incendiar o veículo e se suicidar com a última bala. As crianças escapam do filicídio, contudo, encontram-se perdidas numa região desabitada da Austrália, à mercê da natureza e sem noções de como sobreviver; pouco tempo depois, perdidos no deserto, famintos e desidratados, o casal de irmãos é salvo por um adolescente aborígene, quem cumpre, em sua longa caminhada, um ritual próprio de suas tradições culturais.

A partir de então, no filme se explicitam as contradições desenvolvidas na trama dos três companheiros de viagem. A primeira contradição, evidentemente, é o choque cultural entre dois modos totalmente distintos de civilização, isto é, entre o mundo ocidental das duas crianças, pautado pelas instituições políticas e jurídicas advindas do capitalismo e da civilização industrial, e a cultura praticamente paleolítica do mocinho aborígene, cabendo indagar, prontamente, os motivos de tamanhas diferenças antropológicas. Isso não se explica facilmente; não se sabe por que, contemporaneamente, os povos convivem, estando alguns na idade da pedra, valendo-se de ferramentas primitivas e da caça, feito nômades, outros praticam agricultura rudimentarmente, enquanto boa parte da população está imersa nas variadas etapas do sistema de produção capitalista e na luta de classes.

Desse ponto de vista, ao colocar dois adolescentes e uma criança pertencentes a mundos tão diversos em contato e isolados do restante do mundo, o filme nos leva a refletir sobre a relatividade das culturas, não havendo superioridade de uma sobre as demais; entretanto, quando na trama se tematizam a destruição da natureza e das culturas aborígenes, não se perdem de vista os avanços do capitalismo e a voracidade monopolista do imperialismo, impondo-se, mediante as armas, como cultura tecnologicamente mais desenvolvida.

Perdidos no deserto, em menos de um dia de caminhada, os irmãos estão sem comida, água e, para se protegerem da intensidade da luz e do calor do Sol, terminam ilhados debaixo dos galhos desfolhados de uma pequena árvore; surpreendentemente, nesse momento crítico, surge o mocinho aborígene, quem consegue resgatar os dois irmãos de situações, por bem pouco, letais. O rapaz não está perdido; adentrando a adolescência, ele cumpre um ritual de passagem entre duas etapas da vida, isto é, a infância e a idade adulta, provando, para si mesmo e para sua comunidade, ser capaz de sobreviver sozinho. E assim, acostumado àquele ambiente extremamente hostil, embora naturalmente belo, o rapaz ensina os irmãos a encontrarem água e comida, além dos cuidados com a proteção de pele sob o Sol inclemente, dos pés, sobre o solo quente e pedregoso, relativizando os saberes das duas civilizações em confronto. Nesse tópico, o filme é fantástico, pois, apesar das diferenças, tanto o menino, ainda criança, encanta-se com a desenvoltura do mocinho aborígene, quanto a garota, já na puberdade, repara da virilidade do rapaz, quem corresponde, admirando a formosura da companheira, ambos em plena juventude.

Entretanto, esse quase paraíso, fundado praticamente na solidariedade e na inocência dos protagonistas, distantes do racimo, pois os irmãos são loiros e o rapaz é negro, está imerso também em destruição quando, durante a longa caminhada dos três viajantes, o filme mostra diversas mazelas do capitalismo. Entre elas: (1) a destruição dos povos nativos, fadados à pobreza, falta de moradia e exploração sexual por meio da prostituição; (2) a exploração irracional da natureza por empresas multinacionais; (3) a prática demencial da caça esportiva, restrita a matar animais desnecessariamente; (4) a decadência dos costumes burgueses quando um pai, no limite da sanidade, intenta assassinar os dois filhos.

Certa vez, um colega meu, professor de história, colocando em xeque a relatividade das culturas, demonstrada e defendida veementemente por alguns antropólogos, indagava qual comunidade nativa, durante as Grandes Navegações, trocando ouro por espelhos e anzóis de ferro, conseguiu fazer a Revolução Industrial e dominar, mediante armas de fogo, a Europa, o Japão ou os Estados Unidos. A pergunta, certamente, é provocativa, desviando-se de questões antropológicas para enfatizar, diante do processo histórico levado a cabo pelos capitalistas, a evidência material da destruição sistemática de quem trocou ouro por espelhos.

Nas cenas finais, quando o retorno dos irmãos à civilização é iminente, a relação entre eles e o mocinho aborígene se desfaz em incomunicabilidade. Imersos na natureza, a linguagem do desprendimento se coloca com facilidade; entretanto, quando o grupo se aproxima dos centros urbanos, o rapaz se envolve no seu ritual de passagem, agindo, para os irmãos e para nós, incompreensivelmente, enquanto os irmãos se banham, lavam as roupas, vestem-se, calçam-se e rumam para a civilização. Na última cena, nossa companheira de viagem está crescida e casada, assumindo a mesma vida dos pais, contudo, ao receber o jovem marido chegando do trabalho, durante o beijo de boas-vindas, ela não se esquece daqueles momentos quase míticos vividos na longa caminhada, rememorando, quando se banhavam nus, ela, o irmãozinho e o amigo.

No final do filme, todos fizeram sua longa caminhada, não apenas os protagonistas, mas quem assistiu à trama atentamente, admirando a fotografia, com destaque nas paisagens australianas, encantando-se com as atuações de Jenny Agutter e Luc Roeg, nos papeis dos irmãos, e David Gulpilil, no papel do adolescente aborígene, permitindo-se viver, no tempo de duração da sessão de cinema, a experiência mítica e a análise política encenadas na tela. Não se trata, evidentemente, de uma história revolucionária, com vistas a problematizar lutas sociais; no filme, entretanto, não há confusões entre o mundo mitológico, no caso, a mitologia do paraíso perdido, quando todos se entendem, vivendo em harmonia com a natureza, e o mundo real, pautado por relações materiais econômicas e, contemporaneamente, pela luta de classes e o capitalismo, na fase do imperialismo, imposto aos australianos e demais povos do globo, sejam eles filhos de colonizadores, vindos com as grandes navegações e as revoluções burguesas, sejam eles nativos, com seus modos de vida ameaçados de destruição.

Desejando aos companheiros uma boa sessão de cinema, segue o endereço do filme completo no YouTube:

WALKABOUT, A longa caminhada (legendado pt/br)

 

 

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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