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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

Patrícia Galvão – ativismo cultural e político

Pagu enfrentou a polícia repressora de sua época sem fugir da luta

Um artista pode ser grandioso em variados aspectos; frequentemente, artistas se colocam diante de determinada linguagem e buscam aprimorar, inovar e até mesmo subverter seus princípios. Na poesia, isso é bastante comum; o poeta português E. M. de Melo e Castro, por exemplo, ao escrever o livro de poemas “Poligonia do soneto”, 1963, mostra-se exímio sonetista clássico, parafraseando Camões; expressa-se em sonetos inovadores, propondo novas aliterações, assonâncias e lógicas nas formas do soneto clássico; subverte o gênero com sonetos feitos com números e poesia visual. Há artistas, porém, que se destacam propondo novas linguagens: (1) Fernando Aguiar, outro poeta português, articula poesia e arte performática em suas apresentações; (2) Eduardo Kac elevou a novos patamares experimentais a telepresença e a bio-arte; (3) Djami Sezostre inovou complemente, com sua poesia biossonora, as poesias sonoras de Hugo Ball e Kurt Schwitters. Todavia, há artista que, apesar de não se destacarem enquanto gênios do estilo nem inventores de novas linguagens, são exímios articuladores culturais, dando contribuições indispensáveis em várias áreas da arte, da política e do conhecimento. Assim, buscando por Patrícia Galvão, penso em incluí-la nesse último caso.

Patrícia Galvão fez poesia? Sim, sob o pseudônimo de Solange Sohl, Pagu fez alguns versos bastante singulares, eis os versos de “Natureza morta”:

Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas. / Estou dependurada na parede feita um quadro. / Ninguém me segurou pelos cabelos. / Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova / Espetaram, hein? a ave na parede / Mas conservaram os meus olhos / É verdade que eles estão parados / Como os meus dedos, na mesma frase. / Espicharam-se em coágulos azuis. / Que monótono o mar! / Os meus pés não dão mais um passo. / O meu sangue chorando / As crianças gritando, / Os homens morrendo / O tempo andando / As luzes fulgindo, / As casas subindo, / O dinheiro circulando, / O dinheiro caindo. / Os namorados passando, passeando, / O lixo aumentando, / Que monótono o mar! // Procurei acender de novo o cigarro. / Por que o poeta não morre? / Por que o coração engorda? / Por que as crianças crescem? / Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas? / Por que existem telhados e avenidas? / Por que se escrevem cartas e existe o jornal? / Que monótono o mar! / Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo. / Se eu ainda tivesse unhas / Enterraria os meus dedos nesse espaço branco / Vertem os meus olhos uma fumaça salgada / Este mar, este mar não escorre por minhas faces. / Estou com tanto frio, e não tenho ninguém … / Nem a presença dos corvos.

Não quero me perder analisando o poema, mas vale a pena atentar para, pelo menos, duas características suas, inovadoras na época do modernismo e utilizadas com frequência na poesia brasileira contemporânea: (1) a repetição de construções linguísticas – na primeira estrofe, os verbos estão conjugados no gerúndio e, na segunda, há insistência nas orações interrogativas –; (2) utilização do imaginário surrealista – as descrições das condições da poeta, transformada em ave e pregada na parede, e as alusões do mar escorrendo por sua face –. E assim, despretensiosamente, Patrícia Galvão se vale de poéticas bastante valorizadas atualmente, seja pelo concretismo, no caso do destaque de elementos linguísticos por meio de repetição – a poesia de Arnaldo Antunes, por exemplo, está em grande parte baseada em repetições semelhantes –, seja pelo surrealismo, no caso dos conteúdos delirantes, semelhantemente às poesias de Roberto Piva e Sergio Lima, surgidas posteriormente.

Além de poeta, Patrícia Galvão escreveu prosa; após o romance “Parque industrial”, lançado com o pseudônimo Mara Lobo, em 1933, valendo-se de outro pseudônimo, então King Shelter, ela escreveu nove contos policiais para a revista “Detetive”, em 1944. Não se trata de altas literaturas, mas de literatura popular; diferentemente das vanguardas experimentais, surrealistas e neorrealistas, Patrícia Galvão aproxima-se nesses contos de estilos, no futuro, valorizados pela arte pop, as histórias em quadrinhos, pelo cinema e, inclusive, pelas ditas altas literaturas – vale a pena lembrar de que o romance “O nome da Rosa”, de Umberto Eco, entre suas referências filosóficas, históricas e semióticas, cita explicitamente os romances policiais de Conan Doyle e suas célebres personagens, Sherlock Holmes e o Doutor Watson –.

Patrícia Galvão também fez o roteiro e ilustrou histórias em quadrinhos; no jornal “O homem do povo”, de 1931, realizado em parceria com o escritor Oswald de Andrade, são de sua autoria as tiras da trinca Malakabeça, Fanika e Kabelluda, nas quais o casal sem filhos Malakabeça e Fanika recebe da cegonha a sobrinha pobre Kabelluda, quem desestabiliza o casal, faz comícios, é fuzilada pela polícia e ressuscita para continuar a luta. Não se trata de personagens convencionais de tiras de quadrinhos, com suas desventuras e consolos pequeno-burgueses; seus quadrinhos são, isso sim, bastante originais, seja nos temas tratados, discutindo sexo, nacionalidade brasileira, repressão policial e moralismo burguês, seja no sabor surrealista das tramas, seja inclusive no traço, pois, embora o virtuosismo plástico dos ilustradores faça parte das qualidades das HQs, ele não é o fator principal, colocando-se depois das relações entre a forma visual e as tramas encenadas pelas personagens.

Patrícia Galvão ainda se envolveu com o teatro brasileiro; em 1958, juntamente com Paschoal Carlos Magno, criou o Festival de Teatro Amador de Santos, o FESTA. Nessa empreitada, Pagu traduziu Antonin Artaud e Eugène Ionesco para o português; no papel de crítica de arte, vale lembrar de que Pagu discorria com fluência não apenas sobre teatro e literatura, incluindo em seus ensaios temas da pintura e da música erudita.

Por fim, ao lado de tantas e indiscutíveis qualidades intelectuais e artísticas, Patrícia Galvão não se refugiou em agremiações e partidos políticos pequeno-burgueses, pautados pela alienação política e discursos direitistas e reacionários; Pagu foi militante de porta de fábrica, enfrentando a polícia repressora de sua época sem fugir da luta.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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