Esta semana, resolvi escrever uma reflexão sobre minha viagem a uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, onde estive nas últimas semanas (não, não foram férias. Com o trabalho remoto, consegui cumprir minhas obrigações normalmente).
A cidade de Santa Cruz do Sul, com pouco mais de 130 mil habitantes, está em uma região que foi colonizada por alemães, em sua grande maioria camponeses, tendo sido fundada, como povoado em 1847.
A cidade é industrializada, com uma concentração razoável de multinacionais ligadas à indústria do cigarro, abastecidas pela produção agrícola de folhas de fumo das pequenas propriedades rurais de seu entorno.
Por causa desta simbiose, a cidade tem um desenvolvimento econômico alto. Os habitantes orgulham-se da qualidade de vida e dos ares europeus que ainda estão presentes em festas e tradições.
No entanto, nem tudo é o que parece. Meu interesse por Santa Cruz do Sul está no fato de que meu pai nasceu nesta cidade e, desde criança, a visito ocasionalmente para rever parentes que ainda vivem ali.
É uma forma de sair de São Paulo e expurgar um pouco as durezas de viver em uma cidade tão inóspita com a grande maioria de seus habitantes.
Recentemente, fiz uma pesquisa sobre os partidos que governaram Santa Cruz do Sul desde a ditadura militar e não encontrei nenhum de esquerda. A atual prefeita é do PP e na câmera legislativa há apenas um vereador do PT.
Isso mostra o perfil conservador da elite e da classe média local, formada em sua grande maioria por profissionais liberais, comerciantes e pequeno-burgueses, muitos descendentes dos primeiros alemães imigrados.
Nota-se uma diferença cultural enorme entre as gerações. A cultura camponesa trazida pelos alemães originários praticamente desapareceu. Muitas vezes é desmerecida. Como as casinhas de madeira, chamados de chalés, que são sinônimo de pobreza e estão sendo totalmente destruídas.
Conhecer a origem desses primeiros imigrantes é muito interessante. Eles são filhos da diáspora provocada pela Revolução Industrial. Foram expulsos de seus modos de vida, de suas terras e de sua história pelo avanço do capitalismo do século XIX no continente europeu.
Para evitar a pobreza extrema e a exploração impiedosa nas cidades germânicas, largaram tudo e vieram ocupar o sul do Brasil, beneficiados pelas políticas de colonização da fronteira sul do país e de embranquecimento da população dos governos de então.
O território já era habitado por povos originários. Nos dias de hoje, vemos seus descendentes venderem cestas ou pedirem esmolas no centro da cidade, mostrando o total descaso dos que governam.
Se fizermos as contas, muitos desses primeiros colonos alemães foram contemporâneos de Karl Marx que, no mesmo período, desenvolvia sua brilhante teoria do materialismo histórico e dialético. Eles viveram a mesma conjuntura histórica e foi sobre o sofrimento de pessoas como essas que Marx escreveu.
Mas não peça a um atual descendente desses colonos em Santa Cruz do Sul para fazer tal associação. Há muito orgulho da origem europeia e falta consciência histórica.
Aos poucos, percebe-se que a cidade, infelizmente, parece entrar em decadência. As “fumageiras” não reinam mais absolutas.
A grande indústria de Santa Cruz do Sul atualmente é a especulação imobiliária, que explora o conceito abstrato e importado de outros cantos chamado de “qualidade de vida”. Loteamentos e condomínios fechados (imagine a origem de um fetiche como esse!) são abertos no entorno da cidade, fazendo-a perder as belas florestas de mata atlântica.
Trata-se da velha fórmula expansionista parasita em busca de lucro rápido, ao invés do desenvolvimento progressista em prol da comunidade.
Esses condomínios fechados atendem o desejo de status da classe média que constrói casas de luxo e enriquece aqueles que controlam o rico sistema fundiário do município. Muitos desses compradores são herdeiros de propriedades e de outras formas de riqueza que foram deixadas por seus parentes.
Interessante notar que vários não conseguem levar adiante os projetos de seus pais. O progresso conseguido pelas gerações anteriores não está sendo mantido. Enormes casas vazias ou alugadas para fins comerciais se espalham pelo vazio bairro de Higienópolis, mostrando que as novas gerações não têm interesse ou não têm os recursos para manter imóveis custosos.
Vereadores são capazes de aprovar leis para fechar as ruas onde moram, em uma forma de raciocínio que lembra o feudal, encastelado-se em nome da segurança.
Nas periferias, vemos a expansão das moradias precárias e das favelas. Há ainda a privatização de serviços públicos básicos, vista por todos com naturalidade.
É uma pena. No final, Santa Cruz do Sul apenas reflete as enormes contradições da realidade brasileira, principalmente a mentalidade das classes médias. No entanto, ainda há moradores que resistem, mesmo que de maneira inconsciente, a essas mudanças impostas pelo capital.
Basta se sentar embaixo de uma parreira de uvas doces, no verão, e perceber que o imigrante ainda está lá, torcendo para que acordemos e honremos sua longa viagem.
* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário