Seguramente é mais difundida, quando se discute a guerra russo-ucraniana, a ideia de que o conflito é uma ameaça à segurança internacional, ante a iminência constante de que a situação descambe para um cenário de guerra total. Os mais alinhados ao Ocidente entram com o discurso de que Putin é uma ameaça aos valores civilizacionais, democracia, direitos humanos, preservação das orcas, Machu Picchu etc. De outro, aponta-se a necessidade de afirmação do multilateralismo como alternativa para um mundo livre dos grandes monopólios ocidentais. Entretanto, poucos têm imaginado um terceiro campo, independente do político e do econômico, em que a vitória ou derrota da OTAN pode definir o futuro do século XXI.
Hoje, de alguma forma somos todos americanos. O imaginário cultural dos Estados Unidos tem impacto na vida de todas as pessoas, mais profundamente a cada década. Se há trinta anos já tomávamos Coca-Cola, hoje já começamos a prestar atenção a campeonatos locais de futebol americano, mesmo sendo nós os maiores mestres do futebol que realmente importa para todo o mundo.
Nenhum país está livre disso e, portanto, isso mostra-se uma consequência direta da imposição de cultura por meio da economia, que é exercida pelos países imperialistas. Capitalismo e cultura-pop estão irmanados, sendo esta a expressão da indigência cultural imposta à classe trabalhadora, para que ela não desenvolva senso crítico e fique como está, muitas vezes animalizada por expressões plásticas, musicais, audiovisuais que afastam o humano de seu dado sublime e revolucionário, produtor de inovação e cultura, para reduzi-lo a um reprodutor de processos, sejam eles trabalhar, comer, consumir drogas, fazer sexo. Entre a obsolescência do erudito e a recusa ao popular, termina-se no vazio pós-moderno.
Vazio esse que tem sido preenchido com, desde os anos 70, com um tipo de mudança na interpretação moral dos costumes. Torna-se libertador aquilo que é relativizador, que fratura a unidade de todos os grupos sociais tradicionais, entre eles o principal, a classe trabalhadora. Daí advém a ideologia woke, que coloca trabalhadores homens contra mulheres, negros contra brancos, além de incontáveis frações de minorias abstratas de gênero, cada uma podendo falar da outra e todas podendo se afirmar como querem.
Não me espantaria a emergência futura do sujeito “trans-espécie”, ou seja, o humano que se identifica como vaca. Ou como rúcula. E, aqui, em minha defesa, deixo claro que respeito e reconheço essa identidade desde antes de ela aparecer. O que está em questão é a confusão e a divisão do ser humano nesse tipo de organização cultural, que se diz portadora dos avanços do século XXI. “Os tempos mudaram”, é o mantra. Talvez a frase curta seja, freudianamente, um ato falho sobre a incapacidade de completar com “para melhor”.
A descentralização da produção de cultura, do intercâmbio de conceitos morais e comportamentos, é o que se mostra fundamental para a sobrevivência ou mesmo libertação do ocidente. De todos os processos revolucionários bem sucedidos, no mundo, poucos estão fora de África e Ásia. Na Europa todos morreram. Na América Latina, os poucos permanecem sufocados.
E, com esta guerra, que define o que serão as relações políticas e econômicas do século XXI, tomaremos um rumo com novas possibilidades, também, de intercâmbio cultural, abrindo as portas para uma renovação da nossa cultura popular e abandono da indigente cultura ocidental contemporânea. Daí restará só Brasil impor sua agenda, ou seremos todos russo-indo-chineses, porque esses também terão seus projetos culturais e interesses. Mas isso é outra história. O problema agora são os interesses capitalistas ocidentais.