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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

O erotismo na poesia de Ingrid Carrafa

Ingrid faz poesia com o corpo, angústia, dor e erotismo

Durante a pandemia de Covid-19, valer-se da internet e do YouTube foi a solução encontrada para muitos artistas divulgarem seus trabalhos; por iniciativa do poeta paulistano Andri Carvão, surgiu então o encontro Poetas Bêbados, cuja proposta era, em encontros online com pelo menos cinco poetas, falar e declamar poesias enquanto bebíamos vinho, cerveja etc. Dessa maneira, quando participei de uma sessão do evento, conheci a poeta Ingrid Carrafa, do Espírito Santo; meses depois, recebi notícias da publicação do livro “E quando borboletas carnívoras dançam no estômago”, 2021, editora Maré, de sua autoria.

Na capa, há a pintura de Caio Cruz, em que uma moça seminua, expondo o colo e resgando o próprio ventre, dá à luz a enxames de borboletas, expressando tanto o título do volume, quanto o conteúdo dos poemas. Nessas circunstâncias, sugestionado pelas imagens e as palavras, pensei estar diante de um estilo visceral de fazer poesia – segundo as palavras de Lívia Corbellari, também poeta –; impressão confirmada logo nos primeiros versos e estendida ao longo do livro, com tal feitio percorrendo todos os temas, quase sempre envolvendo o corpo, angústia, dor e erotismo.

Os poetas se expressam melhor por meio da poesia, por isso mesmo, vamos passar a palavra a Ingrid em três poemas; eis os versos de “Eu sou o ebó despachado na encruzilhada com pedidos de amor”, em que ela se coloca poeticamente:

“Eu sou o ebó despachado na encruzilhada com pedidos de amor / sou os piolhos da cabeça de Rimbaud / o ópio de Baudelaire / a paranoia de Piva / Eu sou o tremor das pernas ao se aproximar do orgasmo / e a marmita estragada dos presídios superlotados / sou o dar de ombros da puta desenganada / e os boquetes desalmados / Eu sou a úlcera sangrando lentamente / Sou o pus de uma sutura mal feita / Sou a tuberculose que matou João da Cruz e Souza / Eu sou o empréstimo feito para a publicação do livro / os bens vendidos / o nome sujo no serasa / Eu sou a solidão que calou Florbela Espanca / sou a boceta querendo ser fodida / o cuspe e as chicotadas em uma sessão de sadomasoquismo / eu sou / eu / sou / o cataclismo de um corpo afetado pela poesia”   

Nas religiões afro-brasileiras, “ebó” significa oferenda feita aos orixás ou demais entidades do culto, podendo variar de bebidas e pratos de comida ao sacrifício de animais. Nesse sentido e já no primeiro verso, a poeta identifica-se com o sacrifício, pois ela é a oferenda, dando-se enquanto alimento ou imolando a própria vida; além disso, em regra aqueles animais são cabras ou galinhas, cujas conotações apontam para imagens demoníacas. Dessa maneira, a sacerdotisa do rito é identificada à poeta, pois ela quem tem a palavra, tornando-se, na mesma pessoa, carrasco e vítima ao abater e oferecer a si mesma.

Em seguida, ao longo do texto, a identificação se volta para outros poetas, isto é, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, Roberto Piva e Florbela Espanca, reforçando tanto os rumos viscerais do poema quanto o paganismo do ritual encenado. Não se trata de pormenorizar a obra de cada um deles, porém vale a pena, brevemente, lembrar da vida nômade, fora das políticas literárias da época e quase fora da lei, de Rimbaud; da revolução temática iniciada por Baudelaire, repleta de imaginário noturno, morbidez da vida mundana e louvores a Satã; do estilo de Roberto Piva, articulando na mesma poética a verve da literatura Beat, imaginário surrealista, temática gay e estados alterados de consciência mediante drogas alucinógenas; da intensidade com que Florbela Espana declara seus amores. Em vista disso, influenciada por escritores figadais feito ela, Ingrid, semelhantemente à imagem estampada na capa do livro, remete constantemente a entranhas e contestações morais, não se esquecendo das mazelas sociais, tais quais se endividar para financiar a edição de autora, em cujos versos ela se sacrifica por meio da poesia.

Imersa na dor, talvez um dos temas mais sugestivos levados adiante por Ingrid Carrafa seja a sexualidade sadomasoquista, presente no poema anterior, entretanto, mais bem explorada neste outro poema:

“Quebrou muitos limites / Experimentou várias práticas / Chuva dourada / prateada / scat / imobilização com cordas / mumificação / spanking hard / cera de vela quente / agulhas / Foi submissa, masoquista / ficou de quatro na praça de alimentação de um shopping / lambeu a mão do dominador / que ficou de pau duro na hora / foi adestrada / comida de lado, de quatro / em pé / Troca-troca / suruba / ménage / Do inferno ao paraíso / ser amada / talvez / tenha sido o único fetiche que não realizou”

O poema trata de uma lista de práticas sadomasoquistas, todas elas bastante mal compreendidas e, por consequência, censuradas por moralistas; não raramente, condenadas por feministas mal esclarecidas a propósito do sexo e, em regra, por identitários constantemente dispostos a reprovar valores distantes dos limites estreitos de suas diligências e ideologias constrangedoras. Para o SM, a dor, quando presente, faz parte de ritos complexos; não se trata de tortura, mas de erotismo, afinal, nele se conjugam dor, prazer e, sobretudo, consentimento dos envolvidos. Vários escritores cuidaram do tema, entre eles Leopold von Sacher Masoch e Pauline Reage, na literatura estrangeira, e Wilma Azevedo e Glauco Mattoso, os introdutores do sadomasoquismo na literatura brasileira; todos eles e Ingrid Carrafa apenas manifestam, literariamente, um erotismo, antes de tudo, formado socialmente e, fora da imaginação estreita dos moralistas, mais recorrente do que parece.

Dessa maneira, contrariamente à mortificação e o autoflagelo cristãos, cujos propósitos são a repressão do desejo por meio da dor, no SM tais relações são subvertidas, quando nele dor e prazer se correspondem. Nessas correspondências, o sadomasoquismo em Ingrid Carrafa, em especial, o masoquismo, tende, por meio do prazer, a resgatar a poeta do ponto de vista abissal com que ela divisa o mundo; longe de diminuir pornograficamente a mulher, as performances poética e erótica garantem a emancipação em uma sociedade, essa sim, pautada pela violência, a dor e a repressão.

Por falar em performance poética, o erotismo da escritora não se restringe à poesia; Ingrid também se expressa em fotografias. Entre as vanguardas surgidas em meados do século passado, há a chamada Arte do Corpo, quando o artista insere o próprio corpo na obra. Nas artes plásticas, isso se dá de variadas maneiras, desde a espetacularização do ato de pintar, esculpir etc. à inserção nas obras de fluidos corporais, tais quais sangue, urina ou esperma; na poesia, expandem-se os limites do texto verbal à encenação performática, ela mesma colocada além da simples declamação do texto. Em outras palavras, as artes confluem para a performance, propondo-se, na Arte do Corpo, nova modalidade artística envolvendo artes plásticas, poesia etc. Nessas circunstâncias, expor-se mediante a poesia, vinculando a imagem do poeta na expressão dos mesmos conteúdos, passa a ser Arte do Corpo disseminada na confluência da literatura com a fotografia.

Por fim, deixo aos leitores quatro autorretratos de Ingrid Carrafa e um poema seu, ainda inédito.

”            “”Ainda pensei em te falar da solidão das águas de Março / e de como me engastura a cicatriz premonitória que carrego no ventre / Ainda pensei em te falar que a poesia já não flui mais em mim naturalmente / algo se quebrou enquanto eu caminhava de casa para o trabalho ou do trabalho para casa ou me quebraram, não sei / Ainda pensei em te falar da noite escura meus olhos arregalados fixos no teto do quarto / e os sussurros no ouvido / centúrias de Nostradamus / minha menstruação rota alterada descendo como um agouro manchando os lençóis da cama / Ainda pensei em te falar da falta de jeito com o amor e de como parasitei vários homens / voyeur dentro de relacionamentos condenados / Primeiro o naufrago / depois o afogamento / Ainda pensei em te falar sobre o assombro entalado na garganta desde o dia em que encontrei papai morto com a boca semiaberta como se quisesse me dizer o que não disse em 27 anos de ausências /  Ainda pensei em te falar da aflição ao ser tocada como se o toque do outro pudesse me desintegrar em milhares de pedaços / Ainda pensei em te falar das 150 chicotadas numa sessão de sadomasoquismo / eu precisava sentir alguma coisa eu precisava / sentir que tinha asas nos pés e não cascos / Sentir que era eu vivendo – o tempo todo – e não a outra / criada do que eu havia sido / Ainda pensei em te falar / Não fosse o mutismo da intimidade que precede o fim”

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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