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Ric Jones

Médico homeopata e obstetra. Escritor, palestrante da temática da Humanização do Nascimento no Brasil e no exterior.

Liberdade para Assange

John & Julian em Ithaka

A luta de um pai para livrar seu filho das garras do Imperialismo

O poema “Ithaka” de Constantine Cavafy, foi escrito no início do século passado, em 1911, e oferece a perspectiva de que deve haver, em nossas ações cotidianas, a supremacia da viagem sobre o destino. Ithaka simboliza o objetivo supremo que todo sujeito procura durante sua existência. Cavafy faz uma alusão à lendária viagem de retorno de Ulisses, rei da ilha de Ithaka, onde sua esposa Penélope e seu cão Argos o esperavam após a vitória dos gregos sobre os troianos – que Homero retratou em “A Odisseia”. O poema se refere ao percurso pessoal e subjetivo que cada um de nós empreende durante sua vida e sugere que procuremos encontrar durante a permanência na Terra nossa própria Ithaka, o objetivo supremo, que é uma forma de garantir sentido à nossa trajetória pelo planeta. O poema de Constantine, um grego radicado na Inglaterra, ficou tão conhecido que foi recitado no funeral da ex-primeira dama americana Jacqueline Kennedy Onassis.

Konstantinos Kaváfis (1863-1933)

Ithaka (e mantenho aqui a grafia original) é também o nome do documentário recentemente lançado que trata da relação de John Shipton com seu filho famoso, Julian Assange, preso da penitenciária londrina de Belmarsh, onde aguarda sentença de deportação para os Estados Unidos. O filme teve sua apresentação pública ontem na minha cidade e contou com a presença de John Shipton, personagem central do filme, e aborda as peripécias deste australiano de 76 anos que lidera no mundo inteiro uma campanha para a libertação do seu filho, editor chefe do Wikileaks, que denunciou os crimes de guerra dos Estados Unidos no Afeganistão, Iraque e na prisão de Guantánamo no Caribe. Mostra os detalhes da sua vida comum, seu temperamento taciturno e reservado, a relação com os filhos e as conversas com a nora Stella Morris, mãe dos dois filhos de Julian.

Evidentemente existem várias formas de ver este documentário, dependendo da ótica que você escolhe para captar as imagens na tela à sua frente. A mais evidente maneira é olhar para a luta empreendida pelos ativistas do mundo todo pela liberdade de imprensa, pelo direito de expor os crimes contra a humanidade cometidos pelos poderosos, em especial aqueles que controlam as leis, a mídia, a propaganda, as reservas de recursos naturais, os territórios e o comércio. O filme aborda isso de uma maneira bem clara, mostrando que nenhuma acusação contra Julian sobrevive a uma análise baseada nas leis de proteção das fontes e da liberdade de imprensa – em especial as leis americanas. Fica evidente que a prisão de Julian Assange cumpre um objetivo claro: humilhar publicamente alguém que denunciou a barbárie do imperialismo, castigando ao extremo aquele que ousou enfrentar os poderes imperiais e dando um recado a toda a imprensa mundial: não há espaço para criticar os poderes da polícia do planeta; quem assim o fizer será submetido à todas as sanções possíveis, perseguições, ataques, destruição da honra, mentiras e – se for possível – a própria morte. Em verdade, a tortura realizada contra Julian Assange pretende condená-lo à pior morte: a loucura e/ou a depressão pelo isolamento e pelo absurdo das acusações às quais é submetido. Como o personagem Josef K., de Kafka, os supostos crimes cometidos são o que menos importa; o que vale é punir por razões aleatórias e fabricadas qualquer sujeito que ameace os interesses americanos. O “lawfare” contra Lula mostrou em nível local o quanto os interesses geopolíticos de dominação conjugados com a corrupção do judiciário são capazes de servir aos mais espúrios interesses do imperialismo.

Outra forma de ver o documentário é pela exposição da fragilidade crescente dos governos europeus, absolutamente controlados pela política externa americana, não apenas nos aspectos políticos e bélicos (a guerra contra a Ucrânia é um claro exemplo) mas também o poder que a máquina publicitária americana exerce sobre a opinião pública e o próprio judiciário. Fica evidente o quanto os juízes britânicos são meros marionetes comandados pela mão pesada dos americanos, que são quem está de fato julgando este caso, a partir da sua visão persecutória e imperialista. Não há qualquer autonomia para julgar Assange – tanto quanto não havia para os juízes do Iraque ocupado para julgar Sadam Hussein – o que nos demonstra que a tão propalada “liberdade” dos países do “primeiro mundo” nada mais é que uma peça de propaganda, uma mentira mil vezes contada, que apenas serviu para criar a fantasia do ocidente como um espaço de liberdade de expressão e de abertura política. Estas farsas, esses simulacros de democracia, estão sendo aos pouco desvelados e Julian Assange está recebendo esta cruel punição exatamente por se postar na linha de frente nas denúncias, apontando seus dedos para os crimes hediondos cometidos pelos Estados Unidos nas guerras em que se envolveram.

Porém, há uma outra forma de ver o filme, provavelmente a mesma que inspirou John e seu filho Gabriel (meio-irmão de Julian) para colocar no documentário o nome de “Ithaka”. O personagem central da película é John Shipton e bem no princípio do filme ele se irrita quando questionado sobre o que o levou a ficar separado do seu filho dos 3 aos 20 anos. Certamente tem a ver com a separação da mãe de Julian, mas isso não fica claro. Ficou incomodado quando foi perguntado sobre o diagnóstico de Asperger que seu filho Julian tem, dizendo “ele é o que ele é”. John Shipton demonstra durante todo o documentário que é um sujeito pacato, nascido na Austrália, sem vinculações políticas explícitas, com um caráter evidente de uma espécie de misantropia bem humorada, reservado, quieto, pouco afeito a conversas e arredio à publicidade e aos jornalistas. Ele é um dos mais perfeitos exemplos de um sujeito jogado involuntariamente – e totalmente despreparado – no olho de um furacão que está envolvendo os próprios princípios democráticos mais basilares da cultura ocidental: a liberdade de imprensa e o direito de denunciar os crimes cometidos pelo Estado – e pelo Império.

John é a verdadeira personificação do sujeito anônimo que ganhou notoriedade internacional pela prisão criminosa de seu filho – um “Zé Ninguém” alçado ao posto de herói por multidões. No meio do filme ele diz a frase que mais me tocou, e tenho certeza que muitos que viram o filme também sentiram a mesma emoção que eu naquela simples resposta a um jornalista, a qual continha o cerne de sua jornada em direção à sua Ithaka pessoal. Quando instado a falar o que o movia nessa aventura, ele respondeu “Porque sou pai, e isso é o que qualquer pai faria por seu filho”. Ou seja, John provavelmente continuaria indefinidamente em sua vida pacata na Austrália, construindo casas e se alegrando quando as pessoas se mudam para elas. Jamais pensaria na tarefa nobre de defender a causa da liberdade de imprensa ou de combater os poderes abusivos do imperialismo em tantas partes do mundo. Continuaria a ser o sujeito ranzinza e pacato que sempre foi, cultivando seu jardim e cuidando de sua filha pequena. Porém, tudo indica que foi convocado pela deusa “Álea” – a divindade dos fatos aleatórios – para ser o divulgador da causa do seu filho, o mais famoso preso político do mundo. Talvez ele fosse o mais despreparado de todos os humanos para empreender esta viagem tão árdua, difícil e cheia de armadilhas. É possível, entretanto, que esta seja a verdadeira razão oculta da odisseia que transformou sua vida, fazendo do trajeto inusitado que surgiu algo capaz de dar verdadeiro sentido à sua existência. Por muitas vezes eu me coloquei no lugar de John Shipton, pensando o que eu faria em seu lugar, convocado a combater os gigantes macabros que tentam destruir seu filho e – acima de tudo – exterminar o que resta de liberdade de expressão no mundo. Muitas vezes pensei se teria a mesma coragem para denunciar a barbárie que testemunhei. Uma pergunta de difícil resposta; ou talvez a resposta mais fácil.

John Shipton em P. Alegre

Ao final da apresentação do filme pensei em perguntar para John como um pai se sentia vendo seu filho preso, doente, torturado e injustiçado. Quais são as emoções diante da impotência de testemunhar a violência do Estado contra alguém cujo crime foi revelar a verdade. Preferi me calar porque sabia que essa pergunta pouco poderia revelar objetivamente, porque só calçando os seus sapatos e caminhando o percurso tortuoso que ele trilhou para saber a dor de esperar a volta de um filho injustamente acusado, inocente e preso por ser bravo e combativo. Coube ao meu filho, Lucas, que me acompanhou ao evento, pedir que ele recitasse a poesia Ithaka, que deu nome ao documentário, e pedisse para que ele nos dissesse “quanto tempo temos e quanto de esperança podemos carregar ao peito”.

Sua resposta foi até óbvia: ele se mantém esperançoso e seu filho “sofre, mas resiste”, e que o imenso apoio internacional que está recebendo de tantos povos, nações e instituições é uma luz de fulgurante esperança de que Julian um dia poderá voltar para casa – ou para o Brasil, conforme o convite do próprio presidente Lula. A seguir recitou em inglês o poema Ithaka, cuja tradução transcrevo abaixo:

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Poseidon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Poseidon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

Poema de Konstantinos Kaváfis (1863-1933)

Ithaka: A Fight To Free Julian Assange | Trailer

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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