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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

Isadora sobre o meu telhado

A musa na multidão

Para incentivar os companheiros a publicarem contos e crônicas, resolvi divulgar minha prosa. Todo conto sempre remete a outras histórias; inspirado em antigos seriados de terror, feitos para televisão, escrevi o conto “Isadora sobre o meu telhado”:

A tela enorme, talvez um dia todos os canais de televisão estarão ligados simultaneamente e os guias de TV, tão grossos como a lista telefônica da cidade de São Paulo, ou, com toda a informação disponível na net, lançaria mão deste livro, daquele vídeo, reencontraria um seriado norte-americano da segunda metade do século passado, coisas da televisão, tinha eu 14 anos, em 1978 podia apenas registrar os títulos dos episódios numa caderneta ao lado dos nove planetas do sistema solar e alguns dinossauros… 30 anos depois, no futuro e nas mãos, os vinte episódios, em três DVDs, a primeira e única temporada de “Kolchak e os demônios da noite”… nos tempos do agora, poucos instantes antes de começar a sessão, acaba a luz, depois de quase 30 anos, não vejo nenhuma lâmpada acesa nas imediações.

Na escadaria escura, as únicas lanternas são a vela acesa na mente, antes de subir, e a lâmpada miúda na base do isqueiro quase sem gás, esquecida desligada no bolso, meu isqueiro contra o gênio do mal, mas trazia a chave do terraço entre os dedos, o piso frio, o ar fresco de uma noite de verão. Rever pelo menos o primeiro episódio, “Jack o estripador perdido em Chicago”, a solução é tão estranha quanto os primeiros contos das séries escritas por mim quando criança, imaginar universos tão bizarros, Godzilla contra King Kong, comedor de eletricidade, e o monstro da bomba H a rastejar pelos esgotos de Tóquio. Assim é o mundo lá fora, lá em cima, o programa espacial brilha cor de prata, da porta entreaberta do terraço diviso a Lua crescente, entro descalço, feito Moisés, mesmo sem exílio ou sarça.

Esperaria horas, não procuro pelos caminhões guindastes para consertar a luz… a ilusão de ver ali uns gatos, escutar só uivos e latidos, nenhum movimento nas ruas tranquilas… o prédio tem apenas quatro andares sem elevadores, parece os prédios da antiga União Soviética, um projeto para o Trópico de Capricórnio, Bauhaus abaixo da linha do equador… cercado de livros e de CDs, entre álbuns de vinil antigos em 33 rotações, a Lua me aproximaria da Índia, só seriam os gatos em vez dos macacos, camelos, apagão em Cuba… o terror dos 14 anos permeado de monstros, mocinhas, o charme dos desajeitados na busca sem fim pelas namoradas… alguns beijos na boca e no rosto me desmentem.

Seria sábado, eu passara a tarde escutando John Zorn, o cerco de Masada, e Steve Reich, contraponto entre mim, o futuro sem energia elétrica e Isadora… próxima da Lua, a seu alcance não havia flauta, só fingia estar tocando no ar, murmúrio-música feito para o ar e os lábios, mas não diria “come out” numerosas vezes até a frase se transformar completamente, tornando-se incompreensível… havia escrito antes “deformar em música”.

Minha segunda série de histórias de terror foram escritas no início da adolescência, as primeiras, aos seis anos de idade: “Depois de ler estas histórias, vá dormir e acorde assustado, com medo. Suas veias vão gelar, seu sangue vai parar, secar em suas veias; você ficará branco como leite”. Terror em dez capítulos, escrito a lápis, os subtítulos grifados com hidrográfica amarela, alguém voltando do túmulo para se vingar. Era noite sem lua; ouvia-se uma voz no castelo dos Dronsom:

– Você me traiu, por isso eu vou te matar, Nora!

– Não, não, Haaaaaaaaaaa… – e assim, Sérgio apunhalou o coração de Nora, à meia noite.

Anos depois, escrevia um seriado inspirado na televisão, estava lá: “estava aqui no banheiro de uma casa com um cadáver a meus pés e a moça apavorada ao lado.

Tudo começou quando o Dr. Vincent trouxe, de uma expedição arqueológica, um espetador de feiticeiras de 1645, que tinha gravado o nome Matthew Hopkins, um antigo caçador de feiticeiras de Suffolk. Esta arma foi para o museu, mas uma coisa aconteceria durante a noite. Madalena B. voltava para casa em dezessete de novembro, às onze e meia, depois de jantar com seu namorado; ela só não sabia que esta seria sua última refeição aqui na Terra.

Na manhã seguinte, foi encontrada morta na calçada, com uma perfuração na testa de oito centímetros de diâmetro; no seio havia as iniciais MH e, pouco abaixo do joelho, a letra B. Fui até o local do crime.”

A ênfase na terceira pessoa nos primeiros contos, apareço disfarçado quando digo “eu” antes de caçar o caçador de bruxas, enfim, significo alguma coisa quando me desfaço do piloto dessa nova nave, ouro puro, de todos os quilates, à meia luz, seria vermelho, eis o terceiro conto do projeto de livro “A musa na multidão”, ele começaria assim, pela última cena:

“O corpo de ouro, os seios de mulher, robustos, o pinto enorme e duro sob o púbis, canhão com duas balas… visto de perto, o primeiro esguicho de porra, segundos antes de virar estátua; eternizado em ouro, durará para sempre, não oxidará… o tom da falha por vingança, o espanto e o gozo nos olhos e no nariz. O braço direito é Platão, na Escola de Atenas, o esquerdo, Aristóteles, quem segura o livro… a cabeleira loira posta em cachos e a articulação estranha ao redor do falo, do “Timeu” e da “Ética a Nicômaco”, contrariamente aos anjos, um Rafael homem e mulher, a coxa forte, sem marcas, a bunda parecia bunda de mulher, a boca semiaberta, pronta para cantar.

Algumas semanas atrás, no pico escuro, espero alguém ficar na minha frente na hora de esconder os tiros… mocinhas dos romances românticos vestidas de preto, os gays com as camisas para dentro das calças, parecem capitães em seus navios, uma caverna e o monstro da terra é a escultura de uma mulher de olhos vermelhos, há um pé descalço com tornozeleira, quase do meu tamanho, esculpido em barro. Não sei quem ­passou por mim, segredos em meus ouvidos… partiu esvoaçando a cabeleira escura, índia, seus cabelos negros nos ombros caídos, lindos como as noites que não têm luar… não ouvi as risadas, nem o grito medonho da garota ao lado, um bocado de gente, gente demais, sangue e a mocinha nova caída no chão.”

Luciano e meus demônios da noite… o primeiro conto da série narraria os crimes de um assassino agindo na noite paulistana, começa em um inferninho nos Jardins; passo a segunda parte na Rua Sergipe, próximo do cemitério; no final, tenho razão, descubro a obra porque, paralelamente, tematizo as obras em branco, em negro e em vermelho… desisti porque disseminava mal as figuras ao longo da história. Mas hoje vejo a Lua no céu, sem a luz dos postes e das janelas para atrapalhar, o sentido é algo não visto quando entrei, uma mocinha de verdade, de pernas cruzadas feito se meditasse, estaria ali bem antes de mim e de acabar a energia elétrica, notei porque cantarolou, creio sem dando-se conta, alguma coisa da Hildegard Von Bingen.

O terror seria apenas remissões do passado ou a falta da luz viria ao encontro de arrefecer a noite, mesmo assim ela trazia as mangas compridas, vi primeiro as mãos mexendo no escuro, vejo também os tornozelos, os pés, os dedos dos pés atravessados pelas alças das sandálias, em forma de V… o decote começa nos ombros quase descobertos, outro V antes de reconhecer o rosto redondo no meio dos cabelos… sem traição, sem pavor, sem sangue; sequer estava conforme eu gostaria de descrever.

Isadora sorria na escuridão… não era Mantis, quem já enfrentou o Doutor Estranho, nem era Meggan, do Excalibur, sequer seria era a Meg White… meus DVDs na estante, traçar os livros entre “Kolchak: the night stalker”, a palavra expressa o caminho levando daqui ao vale verde do mágico de Oz, em Nossa Senhora de Paris, na saia vermelha da Gal Costa quando jovem, entre o banquinho e um violão. Faz alguns anos, quando me mudei para cá, ainda a via através da janela enquanto se dividia muito mocinha, fazendo o que fazia, nada além disso; depois sumiu, dirá haver viajado, prefere ficar por lá, às vezes gosta daqui… seria Ulisses diante da Gradiva, quem avança por trás da luneta, então eu vi não ser oboé, clarinete ou flauta de madeira.

– Luciano, olha lá, depressa! – estava pronta para me entregar a luneta, mostrava o escuro apontando o dedo naquela direção… dirá, quando estiver menos afoita, ser sua luneta mágica… Isadora sabia o meu nome, ainda tentava me corrigir a mira antes da vista se dispersar – Você demorou demais!

A luneta imersa na escuridão aquém do bem e do mal, sou hóspede naquele terraço e ela parecia bastante alterada; nada de cristal para calçar, nada de pupa, casulo, borboleta, o cisne seria símbolo da noite feminina e lunar… algumas velas, teriam sido essas as visões de Isadora caso focalizasse as janelas dos prédios distantes?

Por isso interrompi o conto, meu primeiro plano para Luciano Breuer, e estou agora diante dos súcubos, tal qual o Breuer original, diante de Anna O… Isadora quase cai, meu engano, estaria bem equilibrada de cócoras, ave na mureta do terraço, o corpo caindo sou eu; depende do ponto de vista, a janela é a sua face branca, a Lua crescente acaba de colocar um cigarro apagado na boca… precisa se acalmar – você não viu mesmo? – vi, no centro de um edifício distante, a janela vazia e a iluminação fraca das velas lá dentro. Velas para o assombro… Isadora está sentada, suas pernas balançam sobre as cabeças lá de baixo, fumando seu cigarro.

Tinha certeza do que vira, Isadora estava tão bonita, mesmo assustada, sorria, seu susto pânico encontra o desapontamento quando respondo não vi, as sombras projetadas na parede da sala não seriam nada.

– Eu juro… eu vi alguém enforcando uma moça lá naquela janela… parecia uma moça, parecia que eu estava vendo televisão – a imaginação e o filme passavam diante de mim, Isadora mira o horizonte, imagino se apenas eu poderia ver Isadora lá, uma alucinação da menina, minha mente divaga entre as fantasias dos contos de terror, a ponta fumada antes de subir não seria responsável por tudo isso. A moça ou moço parecido a moça não teria feito nada para se defender, as mãos estariam amarradas às costas, os tornozelos, amarrados também, ela ou ele parecia desequilibrado na cena da janela, havia alguma coisa na boca impedindo de falar… o caso da forca era bizarro, a corda no pescoço teria de passar por alguma argola presa no teto para alguém ser enforcado assim, sendo sufocado vagarosamente, entremeando sopros de vida.

– Isso mesmo, Luciano, alguns farrapos de vida!

– Sombra de sombra?

– Quase isso, quase sombra… eu juro, olhou para mim… ela olhou bem dentro da luneta, me percebeu espionando tudo.

Para o que servem os objetos dos apartamentos, as entrelinhas da decoração… um gancho para colocar a rede, o sofá vermelho, a cadeira coberta com veludo imitando pele de onça pintada, os companheiros gatos e seus estragos nas pernas das mesas… onde minha alma exterior habita, Isadora não se esquece dos seios pontudos da outra menina, agora tem certeza de se tratar de uma moça, bem maiores que os dela mesma.

– Grandes assim, Luciano… nua daqui para cima… quando me percebeu, acho que tentou se proteger com as mãos, mas não dava – Isadora ficaria presa no plexo solar, viajaria na arca de Noé, porto seguro de suas impressões… ainda sinto o piso frio do cimento sob os pés, minha terra santa aponta para a mocinha fazendo do parapeito sela, ela acende outro cigarro, sua beleza arrisca-se entre a vitória e a glória.

Meu reino naquele terraço, o desejo não tem nenhum objeto natural enquanto ela fala, não escuto, apenas tento não lembrar alguma coisa. Em outros lugares, Isadora espera pelo seu ocaso igualmente a todos os animais guardados atrás dos seios, a coleção de células, fungos, faunas, além daqueles povoando o mundo ao redor, meus gatos por fora, os macacos conhecidos na Índia, donos de templos, eu mesmo entre o céu e a terra diante do corvo ou da pomba, Isadora iria me mostrar pelo menos uma janela depois das chuvas. Talvez um projeto, uma proposta e ela estará pronta para se oferecer, daria seu colo por garantia, estava quase nua quando se comparou, os mamilos pequenos depois da camiseta, o decote V e dois pontos pareciam dois olhos fitando-me atentamente. Do que Isadora gosta? Um modo de sofrer bastante singular, meus modos de me intrometer em tudo, do que seria caso fosse ela na mira da luneta, se estivéssemos somente nós dois naquele apartamento entusiasmados com fumo, com velas, com a forca… Isadora caminharia pé ante pé sobre o parapeito, correria os perigos de ficar nas pontas dos pés ou sufocar… peço para uma fonte jorrar ali, haver água para navegar… a Porta dos Deuses aproxima-se da minha garganta… Isadora ruma para minha cabeça? Então ela se torna a Isadora original entre os gregos, sugere o champanhe, o chocolate, a echarpe enrolada ao redor do pescoço, a seu modo, outra forca, enrolada nas rodas do automóvel ou nas minhas mãos.

Nas línguas estrangeiras tudo parece gemido e urro, o resmungo alheio aproxima-se do grau zero de todas as linguagens… cabeça vem do Latim “caput”, em grego se diz “kephalé”, o radical é o mesmo, em hebraico, “kether” significa coroa… cap, keph, keth, a única relação é poética, está escrito antes dos cabelos, não sei, porém, o que Isadora significa, seu presente escapa no A. Enquanto isso, de boca fechada, escuto os olhos verdes da mocinha da forca, seus cabelos encaracolados, deu para ver, sob as mangas compridas, algumas tatuagens escapando pelos pulsos, os traços no braço direito pareciam letras do alfabeto latino. Recuperado o fôlego, Isadora prosseguirá… nas costas da outra pessoa, de quem não viu o rosto, descobriu tatuado um poema visual do Ernesto Manuel de Melo e Castro, seu signo explosivo, e acima do poema, o caligrama em árabe na forma de leão… Isadora sabe de tudo isso porque eu também sei, no caligrama estava escrito em nome do leão de Deus, a face de Deus, o vitorioso Alá.

Sou feito à sua imagem e semelhança, meu corpo místico coincide com todos os outros; de Nora Dronson a Isadora pareço escrever sempre a mesma história, ainda sou Matthew Hopkins à procura de todas elas, caçador das bruxas, fico entre o salvador e quem pune… quem sabe, depois de se amar, o casal da janela não está deitado agora, à luz de velas, ela lê para ele alguma poesia? A mim, cabe admirar Isadora e sua dialética; através da verdade, a mocinha transita entre os dados da luneta e a interpretação, sentido significa somente o processo da percepção ao logos.

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