Um grupo de estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA) seria o autor de um abaixo-assinado na internet para a retirada de um quadro das dependências da universidade. Trata-se da tela “Alegoria da Lei Áurea”, pintada por Miguel Navarro y Cañizares em 1988.
O texto da petição online, no portal change.org, afirma que “se trata de versão distorcida dos acontecimentos políticos e sociais da época, mais exatamente o sequestro das lutas por liberdade do povo negro no Brasil. Estaria a Escola de Belas-Artes minimamente atenta a isso? Por que não há qualquer interesse pelo debate em torno da imagem que persiste em sua parede? Ou, por que não há qualquer comoção pública entre servidoras e servidores, especialmente entre o corpo docente, em relação a esse contexto?”
Segundo aqueles que pedem a retirada da obra, ela traria uma versão distorcida da abolição. Claramente, vendo o quadro, trata-se de uma determinada interpretação do fato histórico, que podemos concordar ou não. A própria obra de arte, por si só, é passível de interpretação. Nesse sentido, o expectador, ao ter contato com o quadro, pode tirar uma série de conclusões sobre ele e sobre o evento retratado.
Dito isso, está claro que qualquer obra de arte pode ser interpretada de várias maneiras. Se levado ao extremo a proposta dos que fazem o abaixo-assinado, qualquer obra pode estar sujeita a ser condenada.
O que os abaixo-assinados querem não é o debate, como eles dizem no texto. Eles querem a condenação da obra e do autor, assim como os nazistas condenaram a arte degenerada ou a Inquisição queimava livros e obras de arte.
Qualquer cidadão deveria ter o pleno direito de debater qualquer coisa. Como Escola de Belas Artes, a instituição teria facilidade, inclusive, de promover uma obra que retratasse a Abolição de maneira diferente. Mas o obscurantismo identitário não quer debate, quer figueira.
Mais adiante, o texto da petição afirma:
“O autor da pintura, Miguel Cañizares, era afeito à pintura de história com alegorias abolicionistas. Também produzira obra intitulada “Alegoria da Lei do Ventre Livre”, em 1871, onde persiste o mesmo gesto de suposta benevolência das elites brancas e, concomitante, de subalternização de pessoas negras.”
O artista, nascido na Espanha, mas que se radicou no Brasil até sua morte, dedicou quadros a questões abolicionistas. Veja como o identitarismo cega as pessoas. Ao invés de valorizar que o pintor se preocupava com essas questões, logicamente retratando do ponto de vista de sua classe social, rejeitam o artista e o condenam ao fogo do inferno como se ele fosse um torturador de escravos.
Mesmo se ele fosse um escravagista, sua obra deveria ser analisada por si só, mas é o contrário, o pintor era simpático, à sua maneira e com as limitações de sua classe e sua época, ao abolicionismo.
“Não é preciso ir muito longe para apontar que a alegoria simboliza a inauguração dos dispositivos legais que modernizaram a escravização no Brasil, garantindo a manutenção dos pactos de poder entre brancos.”
Aqui, os abaixo-assinados interpretam livremente o quadro. De uma pintura com uma interpretação errada da história, o quadro e o artista se tornam, na cabeça nada criativa dos identitários, um verdadeiro déspota.
Essa campanha, de origem bastante duvidosa, aparece quase que ao mesmo tempo em que no Rio de Janeiro, vereadores aprovam projeto para a retirada do busto de Antônio Vieira da PUC, sob a alegação ainda mais absurda de que ele era escravagista.
Retirar quadros, monumentos, proibir livros. Cada época tem a sua justificativa moral para a censura.
Há os que defendam que tais obras deveriam ser transferidas para museus. Essa não é uma solução que ameniza o problema da censura. As obras de artes e os monumentos históricos devem estar também nas ruas, nas escolas, nos locais públicos. Eles elevam a cultura do país, fomentam o debate, aumentam o conhecimento do povo. Esconder as obras de arte é uma medida quase tão obscurantista quanto queimá-las, um obscurantismo moderado se quisermos.
O texto fala que a permanência da obra seria uma “violência”. Aqui, se podemos falar em violência é aquela que tenta censurar, cancelar e condenar ao fogo do inferno.
Para piorar, o autor da obra, Miguel Navarro Cañizares, foi o fundador da Escola de Belas-Artes, que hoje pertence à UFBA. Segundo os inquisidores, isso também seria uma grande conspiração para manter o poder das “elites brancas”. Certamente, uma escola superior no século XIX, antes mesmo da Abolição, não seria lá muito frequentada por negros.
Querer mudar o nome da Escola em homenagem ao seu fundador é como dizer que seria melhor se ele não a tivesse fundado. Os identitários são tão obtusos que nem percebem que se eles podem falar tantas besteiras sobre arte e história do Brasil, é graças em grande medida ao fundador da escola.