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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Música brasileira

“Hino de Duran” ou a manipulação das leis, segundo Chico Buarque

Composto nos anos 1970, o “Hino de Duran”, de Chico Buarque, permanece retrato fiel do poder judiciário sustentado pela burguesia.

Hino de Duran

Gravado no álbum “A ópera do malandro”, de 1979, o “Hino de Duran”, de Chico Buarque de Holanda, é interpretado pelo próprio compositor e a banda A Cor do Som. Tematizando o poder judiciário, eis a letra da canção:

Se tu falas muitas palavras sutis / E gostas de senhas, sussurros, ardis / A lei tem ouvidos pra te delatar / Nas pedras do teu próprio lar // Se trazes no bolso a contravenção / Muambas, baganas e nem um tostão / A lei te vigia, bandido infeliz / Com seus olhos de raio X // Se vives nas sombras, frequentas porões / Se tramas assaltos ou revoluções / A lei te procura amanhã de manhã / Com seu faro de dobermann // E se definitivamente a sociedade / só te tem desprezo e horror / E mesmo nas galeras és nocivo / és um estorvo, és um tumor / A lei fecha o livro, te pregam na cruz / Depois chamam os urubus // Se pensas que burlas as normas penais / Insuflas, agitas e gritas demais / A lei logo vai te abraçar, infrator / Com seus braços de estivador // Se pensas que pensas etc.

O “Hino de Duran” é a primeira música após a abertura da ópera, sendo cantada por Fernandes de Duran, cidadão respeitável, quem entoa, todas as manhãs, seu hino contra todos os fora da lei. Duran, todavia, ao lado da esposa Vitória Régia, age fora da lei dirigindo redes de bordéis de alto meretrício e, durante a peça, corrompe e chantageia representantes da ordem.

  “Zelar” quer dizer tratar com cuidado, administrar diligentemente, mas também significa vigiar com interesse. Duran zela pela lei no último sentido, ele se interessa por ela enquanto pode administrá-la a favor de seus interesses, tratando-se, portanto, de um criminoso; ironicamente, ele canta o hino cujo tema são leis imperativas e infalíveis, as quais, por deixá-lo impune, mostram-se, contrariamente às palavras do rufião, frouxas e imperfeitas.

Duran, porém, não está fora da lei, mas pretende-se acima dela, pois pode administrá-la. No texto da ópera, Duran chantageia o inspetor Chaves ao descobrir a amizade entre Chaves e Max Overseas, inimigo público nº 1; às escondidas, Max e Chaves agem por baixo da lei e, descumprindo-a, o policial Chaves pode ser chantageado fora dela ou, do ponto de vista Duran, acima da lei.

Nessa trama, o texto de Chico Buarque nos mostra a importância de se colocar diante da lei antes de respeitá-la necessariamente; isso se expressa, pelo menos, de dois modos no “Hino de Duran”: (1) citando a lei, sua extensão e seus castigos; (2) mostrando a conduta das personagens da ópera diante da lei em suas práticas sociais. Assim, sistema judicial e conduta social são colocados lado a lado, mostrando, antes do cumprimento da lei, sua manipulação.

Na canção, explicitam-se o enunciador e o enunciatário das falas; o enunciador é Duran, apresentado no título da canção e no texto da ópera, enquanto o enunciatário é qualquer cidadão identificado, nos termos de Duran, enquanto fora da lei. E quem seriam os tais fora da lei? Estes são os enunciatários do “Hino de Duran”, aqueles respondendo pelo “tu” em cada estrofe: (1) “Se tu falas muitas palavras sutis / E gostas de senhas, sussurros, ardis”; (2) “Se trazes no bolso a contravenção / Muambas, baganas e nem um tostão”; (3) “Se vives nas sombras, frequentas porões / Se tramas assaltos ou revoluções”; (4) “E se definitivamente a sociedade / só te tem desprezo e horror / E mesmo nas galeras és nocivo / és um estorvo, és um tumor”; (5) “Se pensas que burlas as normas penais / Insuflas, agitas e gritas demais”.

Ao longo da canção, tais fora da lei são descritos de forma heterogênea; não há somente um tipo de bandido nas diferentes estrofes, descrevendo-se, pelo menos, dois contraventores diferentes: os bandidos comuns e os revolucionários. As senhas, os sussurros, os ardis, enfim, todos os modos de expressão velada descritos no texto estão em função de tramar assaltos e revoluções; as revoluções, porém, não são necessariamente crimes, caso contrário, muitos seriam criminosos enquanto reflexos culturais tanto da Revolução Francesa, de 1789, quanto da Revolução Russa, de 1917.

No caso específico da cultura brasileira, ninguém se imagina homenageando criminosos no dia 21 de abril, contudo, qualquer lei de segurança nacional trata de quaisquer revolucionários enquanto fora da lei; o bandido, no caso, não é simplesmente o ladrão violando o direito da propriedade privada, mas pode ser todo manifestante político.

Na canção, além das generalizações ao definir tais fora da lei, há concessões das aplicações legais quanto ao estatuto do bandido ou revolucionário; a partir dos versos “Se trazes no bolso a contravenção / Muambas, baganas e nem um tostão”, fica claro que trazer tostões nos bolsos coloca qualquer cidadão acima da lei, havendo, ao lado do conceito de crime, observações a propósito da posição social dos infratores e sua impunidade perante as normas penais.

Por fim, há outra pessoa mencionada na canção, quer dizer, a própria lei. A lei, invocada com o papel de vigiar e punir os bandidos avisados por Duran, está colocada em terceira pessoa e na forma de um substantivo comum e abstrato; contudo, no texto da ópera, essa lei, ganhando dimensões concretas na posição social das personagens, é personificada pelo inspetor Chaves quem, por sua vez, é manipulado por Duran. Ao que tudo indica, a lei é uma terceira pessoa usada retoricamente no lugar do enunciador da canção, ou seja, Duran fala em nome da lei, pois participa ativamente de sua execução.

Expondo o enunciador dos versos, antes de singularizar comportamentos próprios em relação às leis, no “Hino de Duran” revelam-se, igualmente às fábulas, exemplos de comportamentos os quais, longe de serem individuais, somente de Duran, são de ordem social; nessas práticas, não se trata de aplicar a lei, mas de manipulá-la. Colocando-se o sujeito da enunciação na figura de Duran, mostram-se diálogos entre a prescrição da lei – o que se deve fazer – e a liberdade de manipulá-la – o que se pode fazer –; a prescrição está tematizada no enunciado do hino, e a liberdade de manipulá-la, no papel social de seu enunciador, pois Duran representa o papel do burguês quem, além da contravenção, traz no bolso muitos tostões.

A canção “Hino de Duran” está completa no YouTube, neste endereço:

hino de duran - chico buarque

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