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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Cinema

Erotismo e pornografia no cinema

A pornografia está na pauta da censura

Tratar do erotismo no cinema é tratar de sua história; se a primeira sessão de cinema foi em 28 de dezembro de 1985, em Paris, com as projeções dos irmãos Lumière, o filme “A hora de dormir da noiva”, em que a atriz Louise Willy se despe indo para cama, foi rodado em 1986, ano também de “A paixão de Cristo”, o primeiro filme sobre Jesus. Dessa maneira, não pretendo enveredar pela história do cinema, preferindo cuidar de algumas passagens, devidamente escolhidas, para discutir as polêmicas entre erotismo e pornografia.

Inicio, portanto, lembrando-me de três atores ingleses de talento e beleza incontestáveis, isto é, Peter O’Toole, Malcolm Mc Dowell e Helen Mirren. O primeiro é o famoso ator de “Lawrence da Arábia”, 1962, e de “A noite dos generais”, 1967, mas também quem fez o papel do imperador romano Tibério, cujo sobrinho Germânico foi pai de Calígula, por sua vez vivido pelo ator Malcolm Mc Dowell no filme “Calígula”, de Tinto Brass, 1976, com Helen Mirren fazendo o papel de Caesonia, esposa de Calígula. No filme, ao lado das políticas excêntricas do terceiro imperador romano, abundam cenas de sexo explícito, com orgias vivamente orquestradas, nas quais se destacam a formosura dos atores e atrizes envolvidos. Desse ponto de vista, o filme, naquelas cenas, apesar da distinção do elenco, aproxima-se do cinema dito pornográfico.

Malcolm Mc Dowell, 5 anos antes, em 1971, atuou em outro filme polêmico, o célebre “Laranja mecânica”, de Stanley Kubrick. Na época, acusado de semear violência e pornografia, o filme foi proibido; em sua exibição no Brasil, sobre os fotogramas com imagens de seios, púbis e pênis pairavam círculos pretos para evitar que maiores de 18 anos vissem o corpo humano desnudo, pois essa era a censura etária para entrar na sala de exibição havendo cenas de sexo e brutalidade. Nessa concepção, a dos censores moralistas, o filme, em vez de refletir e discutir a violência gerada pelo sistema político e suas formas de repressão, seria capaz de motivá-la, inclusive os estupros e demais desmandos exibidos na tela; nessa linha estreita de pensamento, cabeira indagar a tais censores porque os homens ainda não se tornaram totalmente pacíficos e de boa vontade depois das leituras dos evangelhos, insistentemente ouvidas durantes as missas, ou de assistir a filmes sobre a paixão de Cristo exibidos seja durante a Semana Santa, seja no Natal.

Os exemplos de filmes com cenas de sexo tangendo a suposta pornografia são numerosos; para mencionar apenas alguns diretores e diretoras, podemos lembrar de Bernardo Bertolucci (“O último tango em Paris” 1972, “A Lua” 1979), Bigas Luna (“As idades de Lulu” 1990, “Ovos de ouro” 1993, “A teta e a Lua” 1994), Pedro Almodóvar (“Carne trêmula” 1997), Tinto Brass (“Salão Kitty” 1975, “Calígula” 1979, “Carla, a lolita” 1999), Stanley Kubrick (“Lolita” 1962, “Laranja Mecânica” 1971, “De olhos bem fechados” 1999), Pier Paolo Pasolini (“O decamerão” 1971, “Os contos de Canterbury” 1972, “As mil e uma noites” 1974, “Saló ou os 120 dias de Sodoma”), Nagisa Oshima (“O império dos sentidos” 1976), José Mojica Marins (“Esta noite encarnarei no teu cadáver” 1967, “O despertar da besta” 1970), Ana Carolina (“Das tripas coração” 1982), Vera Chytilova (“As pequenas margaridas” 1966), Jesús Franco (“99 mulheres”, 1969), Derek Jarman (Sebastiane, 1976), Srdjan Spasojevic (“Filme Sérvio”, 2010) etc.

Além disso, há gêneros cinematográficos, tais quais o terror, dialogando constantemente com sexo explícito; o celebre ator, roteirista e diretor espanhol Paul Naschy sempre fez vampiros (“O grande amor do conde Drácula”, 1973), lobisomens (“A verdadeira história do lobisomem” ,1973) e corcundas (“O corcunda do necrotério”, 1973) fazendo sexo; há jovens copulando em todos os filmes dos famigerados Freddy Krueger, Jason, Michael Myers e Chucky, o brinquedo assassino; até em “A volta dos mortos vivos”, de Ken Wiederhorn, 1989, nas cenas finais uma zumbi sensual, com os seios de fora, ataca um bêbado infeliz. A bem da verdade, nem o universo dos desenhos animados estaria isento da tal pornografia, pois os Simpsons, os Griffin e todas as famílias de South Park transam constantemente; nos animes japoneses, há sexo em Sakura Card Captors, InuYasha, Dragon Ball, Cavaleiros do Zodíaco etc.

Um crítico diletante, entretanto, poderia argumentar que a maioria dos filmes citados anteriormente seriam eróticos, estando, portanto, fora dos alcances das merecidas censuras feitas à pornografia… contudo, quais seriam os limites da pornografia? Essa indagação, apesar de frequentemente colocada quando se trata de discutir o tema, nunca é esclarecida porque, na maioria das vezes, os próprios conceitos de erotismo e pornografia não são problematizados.

Certa vez, durante aulas de semiótica assistidas na faculdade, o professor ensinava assim: “o erotismo é sinestésico enquanto a pornografia é anestésica”. A sinestesia é figura de linguagem; há sinestesia quando sensações, derivadas de diferentes órgãos do sentido, são combinadas na mesma expressão, por exemplo, o verso de Cecília Meirelles “o cheiro áspero das flores”. Desse modo, segundo aquele professor, o sexo estaria articulado, no erotismo, a outras sensações além dele mesmo, cujas ausências o tornariam, pelo menos para quem o contempla, tedioso e monótono, apto para dar sono.

Ora, toda hipótese necessita ser testada; logo após a aula, assisti a três filmes pornográficos e confesso que não dormi, pelo contrário, com dois deles me entusiasmei bastante, invalidando, consequentemente, as ideias do professor. Analisando os dados, escolhi dois filmes motivado por gostos pessoais, envolvendo fetiches específicos, sendo o terceiro filme convencional, com apenas casais transando num motel, o que explica meu entusiasmo com os dois primeiros. Desse modo, o critério para admiração não foi a presença ou não de sinestesias, pois havia sinestesias nos três filmes, mas ímpetos pessoais, com os quais julguei, pelo menos dois deles, eróticos, levando a crer que os tais limites entre erotismo e pornografia estão antes no discurso de quem julga do que na obra considerada, seja ela filme, videoarte, história em quadrinhos, literatura, música etc.

Desse prisma, baseado nos critérios de quem sanciona, tudo indica serem tais normas inventadas em função de preceitos morais subjetivos, os quais precisam ser devidamente examinados antes de serem utilizados em debates, polêmicas ou até mesmo em conversas de menor importância. Nessas circunstâncias, estaria correto afirmar ser a pornografia algo aviltante? Pois bem, aviltante, em nossa época, é o sistema capitalista de exploração do trabalho e a decorrente moral burguesa, plena de puritanismos, capaz de reduzir atividades e valores humanos a mercadorias, cujos lastros são, exclusivamente, o dinheiro. Dessa maneira, quando no seio da família burguesa repetem-se as relações de trabalho em função do provedor, isto é, quem controla o fluxo financeiro, em regra do sexo masculino, ou seja, o odioso pai patrão, a dona de casa se prostitui mais do que qualquer atriz de cinema erótico ou pornográfico, aviltando-se filhos, filhas e agregados. Nessa situação, o sexo no cinema, seja considerado erótica ou pornograficamente, avilta-se no sistema capitalista não porque ele seja apto à degradação, mas porque foi degradado enquanto produto disponível no mercado consumidor, tendo seu valor libidinoso reduzido a somas em dinheiro.

No filme de terror “Gritos mortais”, de Brett Piper, 2003, há diálogos esclarecedores sobre a prostituição própria do capitalismo. Na trama, um artista fotógrafo se aproveita do ofício para satisfazer fetiches sexuais, explorando, para tanto, modelos ambiciosas buscando entrar no mercado das profissionais em beleza. Nas primeiras cenas, um rapaz, procurando pelo fotógrafo em seu ateliê, é recebido por uma secretária descalça; aguardando na sala de espera, ele observa, na troca de turno, que a próxima funcionária, antes de assumir o gabinete, também se descalça, enquanto a anterior, contrariamente, busca pelos sapatos antes de partir. Intrigado, quando o rapaz pergunta para a mocinha do que se tratava, ela responde ser exigência do fotógrafo, seu patrão, quem se especializara e ganhara celebridade tematizando fetiches sexuais semelhantes em suas exposições e livros de fotografia. Na réplica, ele a censura, argumentando se isso não seria prostituição; ela contesta, questionando se os homens se consideram prostitutos ao trabalharem de paletó e gravata, traje obrigatório em várias profissões.

No mercado consumidor, que é o mercado do sistema capitalista, vale repetir, tudo se reduz a trocas financeiras; nesse mercado, tanto o filme quanto seus temas tornam-se valores de troca, logo, se há algo vil no capitalismo não é a pornografia, mas a própria burguesia, cabendo indagar, portanto, como seria o sexo, uma vez superada a fase capitalista no seio da humanidade. Para responder, recorro a outro filme, “A classe operária vai ao paraíso”, 1971, de Elio Petri, em que não faltam cenas de sexo. No final, a personagem Lulu Massa, vivido por Gian Maria Volontè, conta seu sonho da noite anterior, em que a classe operária demolia um muro, no caso, símbolo da burguesia, contudo, além do muro, ele não conseguia ver nada. Não cabe aqui previsões do futuro, ninguém sabe quais formas a sexualidade humana assumirá no mundo livre do capitalismo; para saber, é preciso derrubar o muro em vez de reforçá-lo com novos tijolos do moralismo burguês.

Em seguida, deixo aqui algumas cenas dos filmes “Calígula”, “Saló ou os 120 dias de Sodoma”, “Sebastiane” e “A volta dos mortos vivos”.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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