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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Videoarte e performance

Erotismo e pornografia na videoarte e na arte performática

O corpo sempre incomoda os moralistas

Certa vez, faz algum tempo, chegou até mim o DVD “Destricted”, lançado em 2005, uma produção holandesa reunindo os trabalhos de sete videoartistas: Marina Abramovic, Matthew Barney, Marco Brambrilla, Larry Clarck, Gaspar Noé, Richard Prince e Sam Taylor-Wood. Antes de tudo, porém, o que é videoarte? Não pretendo desenvolver o tema perdendo-me em definições, entretanto, vale a pena contextualizar historicamente seu surgimento na década de 60, a mesma década da televisão enquanto meio de comunicação de massas.

Nos dias atuais, quando fotografia, vídeo e cinema são feitos predominantemente por meios digitais, poucos se lembram de nem sempre ter sido assim. A fotografia e o cinema desenvolveram-se semelhantemente por meio de processos fotoquímicos diferentes daqueles do vídeo-tape, de modo que a popularização da fotografia, datando das primeiras décadas do século XX, não acompanhou a do filme caseiro, que veio a acontecer somente com a popularização do vídeo-tape por meio dos videocassetes e das filmadoras em betamax e VHS, nos anos 1970. Nessas circunstâncias, vários artistas, antes limitados à fotografia, pois a produção cinematográfica tornou-se demasiadamente dispendiosa, passaram a produzir videoarte e muitos estúdios, antes verdadeiras indústrias culturais, tais quais Hollywood, Bollywood ou o Cine Cittá, adquiriam dimensões mais domésticas.

Dos anos 1970 ao primeiro quarto do século XXI, as coisas mudaram na videoarte mediante os avanços tecnológicos seja da fixação das imagens, seja de sua edição mediante aplicativos cada vez mais fáceis de manipular, todavia, parece que a principal distinção entre o cinema e a videoarte permanece sendo a produção e seus investimentos. Dessa feita, podemos retomar o tema da coluna e discorrer sobre o erotismo e a pornografia na videoarte, afinal, esse é o tópico dos sete vídeos integrantes de “Destricted”. Não pretendo, contudo, comentar todos eles, detendo-me apenas em três autores, isto é, Gaspar Noé, Larry Clarck e Marina Abramovic.

O vídeo de Gaspar Noé é praticamente um manifesto sobre o sexo solitário; nele, o rapaz e a moça, em vez de fazerem sexo entre si, cada um se satisfaz solitariamente em seus respectivos aposentos, ele, com a boneca inflável e ela, com o urso de pelúcia grande. Trata-se de vídeo pornográfico ou a autoridade do artista, quem dirigiu “Irreversível”, 2002, “Clímax”, 2018, etc., garante a absolvição diante dos moralistas? No vídeo, não faltam cenas com franca exibição de órgãos genitais devidamente excitados; os atores são sexualmente provocantes; há apologia da masturbação, prática estigmatizada com a pecha de vício solitário… já o vídeo de Larry Clarck é praticamente documentário sobre a seleção dos atores para a realização de um filme pornográfico, exibido no final da obra, no qual se destacam a participação e a empolgação dos envolvidos no projeto. Seria esse segundo vídeo apologia da própria pornografia, em que homens e mulheres são aviltados pelo diretor, sedento por se locupletar sordidamente com a vil exploração do corpo humano, com vistas a degradar ambos os sexos?

A resposta às indagações, evidentemente, é negativa, pois os vídeos reunidos em “Destricted” expressam, justamente, discussões a propósito das fronteiras mal traçadas entre erotismo e pornografia; insistindo na indefinição da zona fronteira entre os dois conceitos, nos vídeos são tematizadas as diluições dos discursos ditos pornográficos em função de outras circunstâncias sociais, entre elas, o prazer, os desejos e fantasias sexuais. Dessa maneira, se nos vídeos de Gaspar Noé e Larry Clarck a sexualidade se sobrepõe à censura, no vídeo de Marina Abramovic, em meio a ritos e costumes pagãos, mulheres dançam nuas para multiplicar a colheita de cereais e mães lambuzam os cabelos dos filhos com o suor das vaginas para os proteger dos maus presságios.

A menção a Marina Abramovic é oportuna, porque, por meio dela, podemos deslocar o foco da videoarte para a arte performática e a arte do corpo, nas quais a artista se notabilizou. Em linhas gerais, ambas as artes são contemporâneas da videoarte e, em parte, elas se complementam, pois, por meio da videoarte, a arte performática e a arte do corpo, enquanto eventos efêmeros, puderam ser registradas; além do mais, em regra, a performance envolve o corpo do artista. Marina Abramovic, por exemplo, certa vez postou-se nua na entrada da galeria, juntamente ao batente da porta, obrigando quem entrasse ou saísse de lá a roçar em seu corpo; em outro evento, também nua, ela dispôs objetos, tais quais flores, armas etc. sobre uma mesa, ao alcance de todos, para serem utilizados contra ou a favor dela pelo público.

Com esse espírito, Singalit Landau fez o vídeo “Barbed hula”, em 2000, quando desnuda, na praia de Telavive, rebolou com o bambolê feito de arame farpado; Ron Athey exibiu-se seminu, em 2004-2005, sentando-se sobre o berço de Judas, a tortura em que o ânus da vítima é colocado sobre a vértice de uma pirâmide, obrigando-a a sofrer o rompimento lento e doloroso do reto. Nessas circunstâncias, isto é, em nome da arte, Landau e Athey se justificam; entretanto, quais seriam as diferenças entre as performances anteriores gravadas em vídeo e vídeos sadomasoquistas supostamente pornográficos, produzidos não com finalidades necessariamente artísticas, mas libidinosas? Na internet, espalham-se variados vídeos de produtoras tais quais Hogtied ou Device Bondage, com pessoas se expondo em ritos BDSM, em regra, bem menos violentos que as performances de Singalit Landau, quem se feriu bastante com o bambolê de arame farpado, ou correndo menos riscos de se machucar, feito poderia acontecer a Ron Athey, equilibrando-se no vértice piramidal do berço de Judas; além disso, quem se entusiasma com SM, certamente aprecia performances artísticas semelhantes não apenas com vistas à fruição artística, mas sexualmente.

Sem conotações necessariamente eróticas Adrian Piper, na performance “Catálise IV”, 1970-1971, caminhou pelas ruas e vagou por transportes públicos da cidade de Nova Iorque com um pano enfiado na boca. Ora, no site russo Street Feet, especializado em podolatria, o fetiches por pés, há acervos com dezenas de vídeos de modelos caminhando descalças pelas ruas, transportes públicos e estabelecimentos comerciais de Moscou e arredores, vestidas de maneiras variadas, de calças compridas a minissaias, de trajes executivos a vestidos estampados… não seria o caso de performances com vistas a desestabilizar costumes sociais, parecidas com as performances de Adrian Piper, Marina Abramovic, Ana Mendieta etc.?

Talvez, dois argumentos cruciais para diferenciar videoarte, arte performática ou arte do corpo e vídeos ditos pornográficos seriam estes: (1) nos primeiros há arte e nos últimos, não há; (2) nos tais vídeos pornográficos haveria prostituição, porque os envolvidos receberiam dinheiro para fazer sexo. Examinadas com atenção, ambas alegações são falaciosas.

Não se trata aqui de analisar a semiótica da suposta pornografia, contudo, não é difícil verificar que a explicitação do sexo nunca foi indiretamente proporcional à expressão artística, a não ser na mente perturbada dos moralistas; vale lembrar, a célebre pintura de Sandro Boticelli, “O nascimento de Vênus”, ao expor a nudez feminina, por pouco não foi queimada por fanáticos religiosos sob a liderança de Savonarola. Toda arte é uma linguagem – em termos semióticos, toda arte é um sistema de signos regidos por regras específicas –; sendo linguagem, para a boa fruição da arte, deve-se conhecer ou, pelo menos, intuir os preceitos específicos de cada obra, estilo de autor, escola, estilo de época. Desse ponto de vista, os vídeos das produtoras Hogtied ou Device Bondage, enquanto performances, seguem regras específicas nas quais o corpo, envolvido em cordas ou outros aparatos BDSM, expressa-se do mesmo modo da arte do corpo; as técnicas de shibari ou bondage são reconhecidas enquanto arte, havendo sobre elas apresentações teatrais, concursos e, inclusive, aulas disponíveis gratuitamente no YouTube; no filme “A prisioneira”, 1968, de Henri-Georges Clouzot, a personagem sadomasoquista, ouvinte de música eletroacústica, é também dono de uma galeria de arte contemporânea, sabendo admirar o SM enquanto forma de arte. Quanto às moças do Street Feet desfilando descalças, se há arte nos desfiles de moda em função do corpo vestido, nada obsta haver desfiles em função do corpo despido total ou parcialmente.

Por fim, sobre a afirmação de teor financeiro, não podemos nos esquecer de que, no capitalismo, o dinheiro tende a reger não apenas o mercado do sexo, mas quaisquer mercados, entre eles, o mercado da arte, não cabendo se valer desse critério para diferenciar artistas e prostitutos. Um violinista tocando em orquestras sinfônicas vende sua força de trabalho semelhantemente a qualquer streaper, pois, enquanto trabalhadores, ambos são explorados; não há por que, invocando o vil metal, diminuir Sarah Blake, célebre por suas atuações na Hogtied ou Device Bondage, diante de Singalit Lau ou Ron Athey.

Em seguida, seguem três imagens com performances de Singalit Landau, Ron Athey e Sarah Blake.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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