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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Linguística

As polêmicas da pornografia

A retórica das palavras erotismo e pornografia

          Certa vez, chegou em minhas mãos um livreto vendido nos arredores de Pompeia, a célebre cidade italiana, próxima de Nápoles, destruída por erupções do Vesúvio, cujo título, em português, seria “Os segredos eróticos de Pompeia”. O adjetivo “erótico”, no caso, é quase eufemismo, pois no livreto abundam fotografias de pintos gigantes e seios fartos em numerosas cenas de sexo grupal, facilmente chamadas pornográficas nos vocabulários identitários e outros vieses do moralismo burguês, puritano, estadunidense, universitário etc.

              Questões assim podem suscitar discussões a respeito das diferenças entre erotismo e pornografia, levadas adiante, em regra, por celibatários, portanto, impregnadas de confusões e delírios morais. Não sou especialista no tema, não dediquei minha vida aos estudos da dicotomia erotismo vs. pornografia, todavia posso, a título de depoimento, escrever alguma coisa sobre o assunto, afinal, faço literatura de viés sadomasoquista desde 2007, com a publicação de romances, contos e poesias, havendo organizado com o escritor Glauco Mattoso as antologias “M(ai)s – antologia sadomasoquista da literatura brasileira”, 2008, e“Aos pés das letras – antologia podólatra da literatura brasileira”, 2010.

              Em 2007, quando foi editado “Análise do texto visual – a construção da imagem”, meu segundo livro na área de semiótica, em meio a fotografias e histórias em quadrinhos, estudei dois textos verbais: (1) o poema “Jogos frutais”, de João Cabral de Melo Neto, rico em sugestões visuais, tácteis, gustativas e sexuais; (2) o imaginário gerado pelas palavras erotismo e pornografia. Quanto ao último tópico, cabe indagar como são feitos os estudos linguísticos do vocabulário de maneira objetiva, sem cair nas malhas das opiniões diletantes, confusas, moralistas e, até mesmo, absurdas.

              Para tanto, entre seus métodos para estudar o vocabulário, a linguística se vale dos dicionários, não porque eles sejam considerados registros fiéis e objetivos do léxico, mas porque os dicionários são reflexos da cultura dominante e suas ideologias. Isso não parece claro em relação a palavras tais quais “porta”, “janelas” etc., entretanto, quando nos dicionários se busca por palavras relativas às paixões sexuais, o moralismo dos dicionaristas evidencia-se com clareza, revelando-se, consequentemente, as ideologias das classes sociais representadas por eles. Dessa maneira, os dicionários, embora não pareçam, são discursos socialmente engajados; logo, para haver clareza a respeito de quaisquer diversidades culturais, o estudo do vocabulário deve ser complementado com a análise de outras fontes além deles, por exemplo, os discursos poéticos, tais quais canções, poesias etc.

              No dicionário Houaiss, certamente um dos mais completos em língua portuguesa, “erotismo” é definido assim: (1) estado de excitação sexual; (2) tendência a experimentar a excitação sexual mais prontamente que a média das pessoas; (3) tendência a se ocupar ou de exaltar o sexo em literatura, arte ou doutrina; (4) estado de paixão amorosa. No mesmo dicionário, há as seguintes definições de “erótico”: (1) relativo ao erotismo; (2) que provoca amor ou desejo sexual; (3) que aborda ou descreve o amor sexual; (4) sinonímia de devasso.

              Do substantivo “erotismo” ao adjetivo “erótico”, há a construção de um tema sobre o qual são projetados significados sociais. O tema é o da sexualidade, que recebe nas definições de “erotismo” e “erótico” sentidos contrários, pois, a partir de excitação, erotismo passa a ser excesso de sexo em relação a médias, por sinal, não determinadas; em seguida, mencionam-se exaltações ou ocupações sem valorizações negativas ou positivas para, por fim, erotismo ser identificado ao amor.

              Em “erótico”, há referências a amor ou desejo sexual e, embora ambos sejam identificados no conceito “amor sexual”, o erotismo, igualado a devasso, termina sendo valorizado negativamente. Dessa maneira, ora exaltado com os conteúdos do amor, ora condenado por devassidão e excessos sexuais, há nos conceitos de “erotismo” e “erótico” oscilações de valorização em três procedimentos: (1) separar o positivo do negativo em termos contrários; (2) conciliar amor e sexo em “amor sexual”; (3) definir excitação sem valorizá-la positiva ou negativamente.

              Determinado o tema e seus conteúdos sociais, percebe-se que as palavras “erotismo” e “erótico” são recortes culturais sobre polêmicas de valorização da sexualidade, e que suas ocorrências em língua portuguesa, antes de resolver as controvérsias, realiza o debate em cada uma delas. Desse ponto de vista, julgar algo “erótico”, isto é, algo tendo “erotismo”, é atribuir predicações cujas definições variam das alegrias do amor às consequências deletérias do excesso e da devassidão.

              Recorrendo, ainda no mesmo dicionário, às definições de “sexo”, é possível esclarecer melhor as concepções de “erótico” e “erotismo”: (1) no homem, conformação física, orgânica celular, particular que permite distinguir o homem e a mulher, atribuindo-lhes um papel específico na reprodução; (2) nosanimais, conjunto das características corporais que diferenciam, numa espécie, os machos e as fêmeas e que lhes permitem reproduzir-se; (3)nos vegetais, conjunto de características que distinguem os órgãos reprodutores femininos e masculinos; (4)conjunto das pessoas que pertencem ao mesmo sexo; (5) sensualidade, lubricidade, volúpia, sexualidade.

              As trocas sociais podem ser valorizadas, pelo menos, de duas maneiras, isto é, as coisas servem para alguma coisa ou têm fim em si mesmo; um carro, por exemplo, pode servir para transportar mercadorias ou ser apenas objeto de coleção. Desse ponto de vista, podemos chamar objetos de uso aos primeiros e objetos finais, aos segundos.

              Nas definições anteriores de “sexo”, ele recebe valorização de uso ou valorização final; nelas, sexo serve para alguma coisa ou tem fim em si mesmo. Quando “sexo” é definido enquanto modos de distinção de machos e fêmeas entre humanos, animais e vegetais, para fins reprodutivos, ele recebe valorização de uso; entretanto, quando é definido enquanto sensualidade, volúpia e lubricidade, sexo designa estados passionais, quer dizer, ele se refere aos ânimos do sujeito, desejando-se o sexo por ele mesmo.

              Nessa rede de valorizações do sexo, quando se trata de valor de uso, o sexo, ao descrever as formas das coisas vivas, é relacionado com a natureza e a vida, recebendo valorização positiva; contrariamente, quando sexo vale por si mesmo, ele se torna perversão e pecado, recebendo valorização negativa. Para constatar isso há, no mesmo dicionário, as seguintes definições de “lubricidade” e “volúpia”, em que ambas são relacionadas à luxúria: (1) lubricidade – propensão para a luxúria, sensualidade exagerada, excitação, lascívia; (2) volúpia – grande prazer sexual, luxúria; (3) luxúria – segundo a doutrina cristã, um dos sete pecados capitais; comportamento desregrado em relação aos prazeres do sexo, lascívia, concupiscência.

              A consulta ao dicionário permite, portanto, deduzir não a definição objetiva das coisas do mundo, mas a definição de uma visão de mundo, vale a pena insistir, bastante moralista ao excluir o sexo enquanto prazer; trata-se, sob a retórica do dicionário, da moral cristã em que o sexo serve somente para a reprodução, sendo, fora dessa função utilitária, nada além de pecado. Em outros discursos, contudo, outras escolhas podem ser feitas; nos discursos das minorias sexuais, por exemplo, há ênfase na valorização final do sexo sem projetar na sexualidade paixões negativas.

              Tratando-se de sexo, sexualidade e discurso erótico, percebe-se que todo discurso erótico se refere a sexo, mas nem todo discurso referente a sexo é, necessariamente, erótico; o discurso da biologia, vale lembrar, cuida de sexo sem erotismo, pois a biologia é discurso científico. Dessa maneira, valorizar o sexo em si mesmo implica, pelo menos, três procedimentos argumentativos: (1) o porquê dessa valorização se dar; (2) a qualidade dessa valorização, isto é, se a valorização e feita positiva ou negativamente; (3) os modos dessa valorização se referir aos demais discursos eróticos.

              O porquê diz respeito ao viés sexual enfatizado, cabendo responder qual a prática sexual considerada, quer dizer, se há heterossexualidade, homossexualidade, sadomasoquismo, fetichismo, necrofilia, pedofilia etc. Nessa classificação, cada viés erótico é definido por meio de significados próprios; na heterossexualidade, por exemplo, cabe a relação masculino vs. feminino; na homossexualidade, identidade vs. alteridade; no sadomasoquismo, opressão vs. liberdade; no fetichismo, totalidade vs. parcialidade; na necrofilia, vida vs. morte; na pedofilia, novo vs. velho.

              Realizada a escolha motivadora da valorização em si mesma, nela são projetadas moralizações positivas ou negativas; se positiva, a prática erótica torna-se paixão do desejo e do entusiasmo, contrariamente, se negativa, torna-se paixão da luxúria ou do pecado.

              Uma vez moralizado, moralizam-se os demais discursos em relação a prática considerada, sendo tal prática definida enquanto parte de uma totalidade maior, com a qual tal parte se harmoniza, ou enquanto uma identidade positiva oposta a alteridades, então valorizadas negativamente. Dessa maneira, na relação da parcialidade com a totalidade, o discurso é mais um em meio a outros, garantindo-se tolerância com os demais, tomados por partes desse todo; na relação identidade contra alteridade, no discurso afirmam-se posições contrárias a suas diferenças, fazendo os demais discursos, porque tornados incompatíveis, serem tratados intolerantemente.

              Um discurso erótico, por exemplo, pode ser sadomasoquista, valorizando o sexo em si mesmo de acordo com os valores opressão vs. liberdade; fazer apologia dessa prática, tomando-a com entusiasmo ou modo de vida e não, por pecado ou perversão; e considerar os demais discursos eróticos enquanto outras práticas entre as quais a sua se coloca, sendo todos partes de um todo. Outro discurso erótico, por sua vez, pode tratar da pedofilia, dando-lhe sentido nos termos novo vs. velho e criticá-la duramente por considerá-la doença mental, justamente, porque a pedofilia pertence ao discurso do outro.

              Com ênfase no sexo enquanto finalidade, sua moralização positiva ou negativa, e nos modos de relação com outros discursos, define-se um discurso erótico e, consequentemente, uma ética e uma estética, nas quais são determinadas justiças e injustiças, belezas e feiuras. Tais ética e estética particulares, por suas vezes, são responsáveis pelos possíveis investimentos negativos definidores da pornografia no seio do erotismo.

              Recorrendo novamente ao dicionário Houaiss, esta é a definição de “pornografia”: (1) estudo da prostituição; (2) coleção de pinturas ou gravuras obscenas; (3) característica do que fere o pudor (numa publicação, num filme etc.), obscenidade, indecência, licenciosidade; (4) qualquer coisa feita com o intuito de ser pornográfico, de explorar o sexo tratado de maneira chula, como atrativo; (5) violação ao pudor, ao recato, à reserva, so­cialmente exigidos em matéria sexual, indecência, libertinagem, imoralidade.

              Para o discurso de qualquer minoria, sua postura tende a ser indecente somente para o olhar do outro, fazendo os limites do pudor serem reinterpretados. A canção “Mujer contra mujer”, de J. M. Cano, gravada pelo grupo de música popular espanhola Mecano, é um manifesto a favor do lesbianismo; eis a letra da canção, com tradução para o português:

              “Nada há de especial / em duas mulheres que se dão as mãos / as nuanças vêm depois quando / o fazem por debaixo da toalha de mesa // Depois, a sós, nada a perder / após as mãos, é o resto da pele / um amor por ocultar / ainda que nuas, não há como escondê-lo / dissimulando como amizade / quando saem a passear pela cidade // Uma delas diz que não está certo / a outra, o que se pode fazer? / e a opinião dos outros não importa // Quem detém pombas ao voo / voando ao rés do chão / mulher contra mulher // Não estou a fim de / jogar-lhes a primeira pedra / se erro no instante / e as encontro lábio a lábio na sala / nem de tossir seria capaz / se não gostar, sei o que devo fazer / com minhas pedras elas fazem sua murada // Quem detém pombas ao voo / voando ao rés do chão? / mulher contra mulher”

              Nesse discurso, a decência de duas mulheres se beijando é colocada em questão, discutindo-se os limites socialmente aceitos em determinadas regras de pudor; para quem se fere com o lesbianismo, essa canção é indecente, para quem não se incomoda, trata-se de manifesto justo. Para os primeiros, há pornografia; para os outros, não, pois para eles lésbicas são semelhantes a pombas ao voo, voando ao rés do chão.

              Esse é, justamente, o estatuto da projeção moralizante; com ela são promovidas triagens na valorização do sexo em si mesmo, constituído por estéticas e éticas eróticas próprias, cada uma com seus padrões sancionadores, por isso os limites entre o erótico e o pornográfico dependem dessa sanção. Dito de modo mais adequado, a definição dos limites é a própria sanção.

              No discurso sadomasoquista, os desenhos de quadrinistas tais quais John Willie, Guido Crepax, Franco Saudelli ou Georges Pichard são obras de arte, em que a estética da bondage, a arte de amarrar, está contemplada com entusiasmo e beleza; nas polêmicas fotografias de Fábio Cabral, do álbum “Anjos proibidos”, e no não menos polêmico filme de Joël Séria, “Não nos livrai do mal”, algo próximo se passa em relação à pedofilia. Dessa maneira, tanto aquelas histórias em quadrinhos quanto o filme e as fotografias podem receber qualificações de ofensivas ou abusivas em relação a determinadas dimensões do pudor, certamente fora dos limites éticos e estéticos levados adiante em cada ocorrência.

              Por fim, percebe-se não haver critérios seguros para traçar limites entre erotismo e pornografia; estando nos olhos de quem vê ou na mente de quem imagina, a pornografia nada mais é que o carimbo dos moralistas, um conceito cujo valor depende não de valores absolutos, mas dos devaneios, dadas as circunstâncias históricas, de cada um.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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