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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

A poesia erótica de Alice Queiroz

Uma mulher sem medo de gostar dos homens

Sou professor de Letras, aprecio sobretudo literatura brasileira, por isso leio bastante os jovens autores contemporâneos. De vários deles, tive o prazer de ser professor; lembro-me carinhosamente de Matheus Steinberg Bueno, Leandro Rafael Perez, Ave Terrena, Del Candeias, Ana Rüsche, Ellen Maria, Paulo Cesar de Carvalho, Oluwa Seyi, Eduardo Lacerda, Ricardo Escudeiro… entre meus ex-alunos, está a escritora Alice Queiroz, quem lançou, em 2022, o livro de poemas “Eu falo”, pela editora Laranja Original.

Na capa, uma surpresa… em vez de símbolos associados comumente ao imaginário feminino, surge uma flor, no caso, o antúrio, flor algo fálica ao sugerir o pênis ereto; colocada abaixo do título “Eu falo”, a flor aproxima-se da voz, portanto da boca, mas também do pênis por meio da identidade entre os significantes “falo”, sinônimo do órgão genital masculino, e a conjugação “eu falo”, do verbo “falar”. Por que a surpresa? Justamente porque, nos tempos do fanatismo identitário, quando homens, mulheres etc. são jogados uns contra os outros, Alice Queiroz é uma mulher falando de pênis, declarando, explicitamente, sua fascinação por eles.

 Conheci a Alice em cursos de semiótica; quando eu travava da semiótica aplicada aos estudos da literatura, solicitei aos alunos, em vez de análises literárias, que cada um tentasse fazer, com base no estudado em sala de aula, pelo menos um poema. O resultado foi excelente; vários alunos, perdendo o medo da exposição, mostraram seus poemas, entre eles, a Alice fez versos eróticos, tematizando, já naquele momento, sua fascinação pelo pênis. Nos versos, ela contradizia um provérbio bastante tosco, isto é, “quem gosta de pinto é gay, mulher gosta de dinheiro” … ora, gays não se resumem a pintos nem as mulheres são prostitutas; no “Eu falo”, reencontrei o poema de Alice, quem, contrariamente ao ditado, prefere assim:

Estereótipo

              “Mulher não gosta de pênis / mulher gosta é de dinheiro” // Dinheiro eu tenho / nem pouco nem muito / o suficiente // Então para que eu / vou querer algo / vulgar sujo comum / e que todo mundo tem / uns de mais outros de menos? // Se for assim prefiro algo / comum sujo vulgar / que muitos têm de normais / uns de menos outros de mais / algo até mesmo banal / que eu nunca vou ter  

No livro, ela explora as muitas metáforas do pênis, em poemas com versos metrificados, versos livres e poemas visuais; por isso, prefiro me deter em dois aspectos de sua poesia, quer dizer, a temática quase religiosa de louvação ao pênis e a engenharia poética bastante promissora.

Se hoje, de alguns pontos de vista, o pênis se tornou símbolo da opressão do suposto poder do homem branco em nome do patriarcado, o pênis já foi louvado, ao lado do útero, enquanto símbolo do poder criador do cosmos. Para iniciar essa discussão, tomo emprestado os versos de outra poeta, Hilda Hilst, quem também gostava de homens e falos; eis os versos do primeiro de seus 10 chamamentos ao amigo:

Se te pareço noturna e imperfeita /  Olha-me de novo. / Porque esta noite / Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. / E era como se a água / Desejasse // Escapar de sua casa que é o rio / E deslizando apenas, nem tocar a margem. // Te olhei. E há um tempo / Entendo que sou terra. Há tanto tempo / Espero / Que o teu corpo de água mais fraterno / Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta // Olha-me de novo. Com menos altivez. / E mais atento.

Nesse poema de Hilda Hilst não é difícil encontrar o tema erótico; o chamamento, no caso, é chamar para fazer sexo. Isso se insinua logo no título, pois nele a escritora alude às cantigas de amigo típicas do trovadorismo dos finais da Idade Média, nas quais o trovador, assumindo a voz feminina, clama pela presença do namorado, em regra, para fazer sexo; diferentemente, na poesia de Hilst, a própria mulher assume sua voz. Além disso, há recorrência a metáforas tradicionalmente associadas ao corpo da mulher, por exemplo, a terra, e correlacionadas à ejaculação e ao homem, tais quais a água, o pastor e o nauta, explicitando-se o apelo do poema ao ato sexual. Valendo-se de imaginário semelhante, Alice Queiroz, nos versos de “Terra úmida”, vai ao jardim descalça, isto é, pisando no chão sem mediações entre seu corpo e a terra, e se fixa no regador, outra metáfora do pênis e da ejaculação, portanto, da criação.

              Terra úmida

              mãos de homem / ásperas e muda / pelos meus cabelos / grandes nuas / pelos meus seios / tépidas duras / pelos meus pelos // enquanto me acaricia de leve / solene toque sem toque / penso em quando se masturba / no mover bruto / sem qualquer emoção / extraindo seiva / como quem rega plantas // penso em quando se masturba / e me excita ainda que / singelamente comedida / e não diga que nas suas mãos / desejo tudo florescer! // acordar a cada manhã / marcada pelo parir do sol / pelo cheiro da terra úmida / descalça ir até o jardim / e cuidar mais do regador que das flores  

Além dessas questões, próprias do conteúdo da poesia, Alice é cuidadosa com a expressão prosódica. Cuidar da prosódia importa tanto na prosa quanto na poesia; os grandes romancistas não trabalham apenas a ficção, mas também as frases e orações utilizadas, contudo, na poesia, o apuro com expressão é fundamental. Apenas para dar alguns exemplos do esmero na literatura de Alice Queiroz, eis os versos de “caprichoso”:

              duro, me chama / mole, me esquece // duro, me excita / mole, me comove // duro, me cala / mole, me ouve // duro, me cerca / mole, me escapa // duro, me engana / mole, me convence // duro, cabe dentro de mim / mole, na palma da mão // duro, adentra minha carne / mole, move o meu coração

A maioria dos versos anteriores são formados por versos de quatro sílabas poéticas, as quais, pautadas pela prosódia, não coincidem necessariamente com as sílabas fonológicas; na sílaba poética, por exemplo, as vogais de sílabas diferentes, quando se encontram, podem ser contadas por uma única sílaba e, na palavra final de cada verso, conta-se apenas até a sílaba tônica. Nas estrofes de “caprichoso”, a maioria dos versos é formada por quatro sílabas, todas elas com acentuação tônica na primeira sílaba e átona nas demais, por exemplo, “du – ro – me – cha (ma) / mo – le – mees – que – (ce)”. As sequências de tônicas e átonas chamam-se pés de verso, estabelecendo-se tipos de pés, entre eles, o chamado peão primeiro, justamente aquele formado por uma tônica e três átonas, utilizado por Alice nesse poema. Entretanto, em meio ao ritmo regular estabelecido, há versos formados com outros pés, todos eles sugerindo seus próprios efeitos poéticos.

A regularidade e seu ritmo, por si sós, já encaminham, em termos eróticos, algumas sugestões, entre elas, a masturbação e o próprio ato sexual; todavia, todo ritmo orgânico é naturalmente irregular – seres humanos não são máquinas, mas organismos –, e isso se reflete nas quebras do pé de verso dominante nos versos “mole, me comove”, “mole, me convence” e nas duas últimas estrofes. Não vou me perder analisando o poema pormenorizadamente, mas Alice poderia ter resolvido as métricas bastando eliminar o pronome “me” em “mole, comove” e “mole, convence”, sacrificando a estrutura sintática repetitiva em função da repetição do pé de verso peão primeiro, entretanto, suas escolhas dão suingue à prosódia, que se encaminha para o desfecho em versos de várias métricas nas duas últimas estrofes “duro, cabe dentro de mim / mole, na palma da mão // duro, adentra minha carne / mole, move o meu coração”. Dessa maneira, ao enfatizar as relações entre ritmo e conteúdo, os versos derramam-se no final, semelhantemente ao prazer nos ritmos do coito.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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