— Victor Assis
Na noite do último sábado (26), o bloco O Tubarão do Canal da Malária, que vinha desfilando aos sábados desde o mês de dezembro, foi duramente reprimido em uma operação covarde da Guarda Municipal de Olinda em conjunto com a Polícia Militar do Estado de Pernambuco. O confronto se deu por volta das 18h30 na Avenida Joaquim Nabuco, em local próximo ao Largo do Varadouro.
O bloco estava em cortejo havia cerca de meia hora e se dirigia ao Canal da Malária, local por onde a troça costuma parar para tirar fotos e envolver os moradores da região.
Tudo ocorria bem, até que apareceram viaturas e carros da Guarda Municipal em alta velocidade. Os veículos pararam, fechando a rua. De dentro, saiu um contingente de agentes ordenando, energicamente, para que o bloco parasse.
Os músicos, então, pararam de tocar os instrumentos e seguiram em direção ao pátio livre de um bar onde o bloco já havia combinado de se apresentar naquele dia. Os foliões, contudo, continuaram cantando marchinhas e palavras de ordem, em especial àquelas relacionadas ao ex-presidente Lula, que é apoiado pela maioria das pessoas que frequentam o bar. Incomodados, os policiais vieram para dentro do bloco, tentando intimidar os manifestantes. Dois companheiros foram puxados pelos agentes, o que levou o povo que ali estava à revolta.
Os ânimos se esquentaram. Às palavras de ordem pró-Lula, os foliões acrescentaram gritos contra a polícia, sendo acompanhados pelo público do bar. O clima ali logo mudou de festivo e descontraído para um clima tenso, opondo os foliões e os clientes do bar de um lado e a polícia truculenta do outro. Em um dado momento, a polícia chegou a agredir de maneira ainda mais violenta um dos companheiros do bloco.
Como sempre, a Polícia Militar escolheu, para intimidar, aqueles que julgava serem os mais frágeis. Ao menos cinco policiais cercaram a companheira Marina Dias, candidata a prefeita de Olinda pelo PCO em 2020. Ela foi a primeira pessoa que a PM anunciou que iria para a delegacia. Além de Marina, a PM escolheu — e ninguém esperaria o contrário — os mais negros do grupo para ameaçar de prisão caso não entregassem os instrumentos.
Depois de cerca de vinte minutos de impasse, uma autoridade pública, que falava em nome uma “secretaria” — os presentes não souberam dizer se pertencente à prefeitura de Olinda ou ao Estado de Pernambuco —, ordenou que os instrumentos fossem confiscados e que a polícia levasse os foliões para a delegacia.
Os policiais afirmaram que iriam levar apenas Marina Dias e Victor Assis na condição de infratores, por serem os organizadores do bloco, e que levaria outras duas pessoas na condição de testemunha. Os outros foliões — cerca de 20 — já haviam, felizmente, conseguido sair do local, diante da confusão instaurada.
O Tubarão do Canal da Malária
A troça carnavalesca O Tubarão do Canal da Malária surgiu, em 2021, da ideia de um grupo de amigos que queria protestar contra o cancelamento do carnaval e, ao mesmo tempo, sair às ruas por Lula Presidente. Todos os seus fundadores são residentes do bairro do Varadouro, em Olinda — mais precisamente, das partes populares do bairro, conhecidas como V-8 e V-9. Não tardou para que o bloco se tornasse conhecido pela vizinhança, especialmente pelos moradores da Rua Manoel de Souza Lopes, onde a troça se concentra.
O nome do bloco é, em primeiro lugar, uma alusão ao Canal da Malária, descrita por um de seus fundadores como “aquilo que unifica todo o V-8 e V-9”. O tubarão, por sua vez, é parte de uma lenda criada pelos foliões, segundo a qual, a cada dois anos, um tubarão assume a forma humana e sai do canal para seduzir os moradores da região, a fim de satisfazer os seus próprios interesses. O tubarão seria o responsável por todas as mazelas do bairro, mas, segundo a lenda, consegue passar impune por causa de seus jogos de sedução. A única maneira de acabar com o tubarão seria, o povo do bairro atirá-lo de volta ao canal quando estivesse na forma humana.
O dia costumeiro de desfile do bloco é o sábado, embora aconteçam outras atividades durante a semana. Mais recentemente, com a inauguração do Espaço Cultural Luizinho Rato do Mangue e do Restaurante Popular do V-8, que também ficam na Rua Manuel de Souza Lopes, o bloco tem unido a sua programação à dessas importantes iniciativas populares. O Espaço Luizinho Rato do Mangue é hoje a sede oficial do bloco, e o Restaurante Popular, por sua vez, costuma servir suas refeições no horário da concentração do cortejo.
O pretexto para a repressão
O pretexto para reprimir o bloco veio do Decreto nº 52.249, publicado no dia 9 de fevereiro pelo governador do Estado:
§5º No período de 25 de fevereiro a 1º de março de 2022, fica vedada em todos os municípios do Estado a realização de qualquer tipo de evento cultural, independentemente do número de participantes, inclusive festas, shows e bailes, com ou sem comercialização de ingressos, em ambientes fechados ou abertos.
No período em que aconteceu o cortejo, portanto, estava em vigor um decreto que proibia “eventos culturais”. Um decreto, portanto, absolutamente ilegal e inconstitucional. Afinal, consta na Constituição, nos incisos IV e XVII do seu 5º artigo, que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” e que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”.
O decreto entra em contradição com a Constituição. Em um Estado Democrático de Direito, coisa que o Brasil está muito distante, um papel carimbado por um governador nunca deveria valer mais que a Constituição. Mas, como há, nos últimos anos, uma tendência à aniquilação total do Direito no Brasil, arbitrariedades como essas são cada vez mais comuns.
Os atentados aos direitos dos manifestantes, contudo, não pararam por aí. Além de desrespeitar a liberdade artística daqueles que queriam brincar carnaval, a operação da polícia passou por cima do próprio decreto. Supondo-se que fosse democrático passar por cima da Constituição por causa do decreto, então seríamos obrigados a concluir que o Artigo 5º seria invalidado unicamente nos casos em que houvesse um evento cultural. Mas no caso, não se tratava de um mero evento cultural, mas sim uma manifestação política e cultural, coisa que o decreto não prevê.
E não para por aí. Em nenhum trecho do decreto, há qualquer punição prevista. Pressupõe-se, portanto, que vigoram as punições previstas em decretos anteriores sobre a pandemia. Em nenhum deles, está previsto o confisco de instrumentos musicais, que é o que efetivamente aconteceu.
O verdadeiro motivo para a repressão
A pandemia é um grave problema para o Brasil, em especial para os trabalhadores. Morreram, até o momento, segundo os dados oficiais, 649 mil pessoas em decorrência do novo coronavírus. O problema é que o cancelamento do carnaval e a proibição de “eventos culturais” é uma patifaria enquanto solução para a pandemia.
Nos últimos seis meses, os únicos decretos do governo de Pernambuco acerca da pandemia dizem respeito unicamente a medidas restritivas em relação ao “retorno gradual das atividades sociais e econômicas”. Isto é, não tratam da construção de novos hospitais, nem da testagem em massa, não propõem extrapolar o orçamento, nem expropriar qualquer setor da indústria farmacêutica para prover maior assistência ao povo. Apenas procuram regular a quantidade de pessoas em determinados locais em determinados horários.
Restaurantes, bares, shopping centers, salões de beleza, teatros e museus foram, no período de agosto a dezembro de 2021, liberados, com poucas restrições. Em janeiro de 2022, o governo manteve a mesma política acrescentando a obrigação da comprovação vacinal para entrar em alguns locais. Com essa política, o governo de Pernambuco levou mais de 1,2 mil pessoas a óbito no período relatado.
Em fevereiro, especificamente, o governo de Pernambuco mudou, de maneira significativa, apenas duas questões: restringiu o público de eventos esportivos e proibiu os “eventos culturais” no carnaval. Isto é: atacou somente aquilo que diz respeito ao lazer do povo — em especial o povo pobre.
Assim como fez durante toda a pandemia, o governo não se propôs a restringir a atividade da indústria, nem a capacidade dos transportes coletivos, que são, de longe, dois dos grandes causadores da contaminação por coronavírus. Não restringiu horário de shoppings, nem de restaurantes. Escolheu, em menor grau, o futebol, e, principalmente o carnaval.
O motivo é simples: o carnaval, enquanto manifestação cultural de massas, sempre foi um evento fortemente político. É uma festa do povo, em que o trabalhador, que come o pão que o diabo amassou, aproveita para extravasar — relaxar, descontrair e ridicularizar os seus inimigos. Como os maiores inimigos dos trabalhadores são a direita, é inevitável que ela seja o grande alvo do carnaval. Basta lembrar que os principais gritos dos carnavais de 2019 e 2020 eram “Fora Bolsonaro” e outras variações mais vulgares.
A direita quer proibir o carnaval porque sabe que, na atual polarização em que o País se encontra, o carnaval se transformaria numa manifestação de milhões em favor da candidatura de Lula. A pandemia, portanto, é mero pretexto.
O que aconteceu na delegacia
Após cerca de quatro horas de espera, os quatro foliões trazidos para a delegacia — Victor Assis, Marina Dias e mais dois companheiros que seriam “testemunha” dos eventos — foram obrigados a assinar um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). Foram vítimas, portanto, de uma emboscada: o delegado, ao contrário do que prometera o policial, não colocou os dois companheiros como “testemunha”, mas sim como infratores.
O grupo chegou a protestar na delegacia, ocasionando novo confronto com os guardas municipais, que agora estavam acompanhados pela polícia civil. O delegado, no entanto, ameaçou prender quem não assinasse o TCO, obrigando todos, portanto, a referendarem a farsa.
O TCO exclui o nome dos policiais envolvidos na emboscada, ignora a participação de partidos políticos na atividade — chamando-a meramente de “troça” — e, é claro, não faz menção alguma ao fato de que havia crianças no bloco que por pouco não viram alvo da polícia.
O documento ainda afirma que os quatro infringiram no artigo nº 268 do Código Penal. O artigo, que discorre acerca da propagação de doença contagiosa, prevê pena de um mês a um ano de prisão e multa. Os foliões foram soltos na mesma noite, mas terão de responder perante a Justiça e, caso declarados culpados, podem até serem presos.
Embora o grupo tenha sido liberado, os instrumentos ficaram retidos na delegacia. O bloco de carnaval só poderá reaver seus instrumentos após o término do carnaval.
Foliões não baixarão a cabeça
Ao saírem da delegacia, todos os quatro autuados, que são moradores do V-8, foram recebidos com total apoio pelo bairro. E não era de se esperar outra coisa: em qualquer bairro popular, a polícia é odiada. Todas as organizações envolvidas no bloco — O Tubarão do Canal da Malária, os comitês de luta, o PCO, a Bateria Zumbi dos Palmares e o Espaço Cultural Luizinho Rato do Mangue já anunciaram que irão fazer uma festa no dia em que retomarem os instrumentos e que irão fazer um grande arrastão no próximo sábado (6).