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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

A presença das mulheres na literatura brasileira contemporânea

Há diferenças entre a literatura escrita por mulheres e a literatura escrita pelos homens?

 Sempre houve escritoras em todas as épocas da literatura brasileira. No livro “Escritoras brasileiras do século XIX”, uma antologia organizada por Zahidé Lupinacci Muzart, professora titular da UFSC, são reunidas 52 escritoras, provando que, mesmo não podendo votar naquele século, pois tal direito seria conquistado para mulheres apenas em 1932, injustiças semelhantes não limitaram a participação feminina na literatura. Evidentemente, em épocas quando a mulher brasileira ocupou e vem ocupando espaço na sociedade, seu papel na literatura explicita-se com mais clareza, não causando surpresa encontrar tantas poetas e prosadoras na literatura brasileira contemporânea.

Ora, se há estudos da literatura feita por mulheres, cabe indagar se há diferenças entre as literaturas escritas por elas e a literatura feita pelos homens. Certamente, não se recorre aqui aos estudos da biologia, psicologia, psicanálise, pois não é por meio da genética, da anatomia ou da psique que aquelas diferenças serão justificadas; as diferenças entre homens e mulheres pelas quais se buscam, se é que elas existem, são históricas, antropológicas e semióticas. Pois bem, nas sociedades em que há divisão dos trabalhos, cabendo a homens e mulheres suas respectivas partes, desenvolvem-se frequentemente universos simbólicos distintos para cada sexo, com costumes próprios, inclusive envolvendo tempos e espaços de cada um deles.

Nos romances de José de Alencar, Machado de Assis e Aluísio Azevedo, há vários capítulos em que são descritas reuniões de negociantes, estudantes e políticos, típicas do mundo masculino da época, e festas familiares, em que homens e mulheres convivem; entretanto, no romance “A Silveirinha”, de Júlia Lopes de Almeida, publicado em 1913, descrevem-se as reuniões exclusivas das mulheres e seus modos de interferir na sociedade, inclusive na política. Uma vez praticado apenas por mulheres, seria esse o caso de um costume descrito com fidelidade somente por elas? Algo semelhante se passa no romance “Lésbia”, de Maria Benedita Bormann, publicado em 1890, em que são narradas passagens da vida de uma escritora, seus amores, entre eles, um poeta anos mais jovem. Seria novamente o caso de outra experiência exclusivamente feminina? O fato de homens e mulheres assumirem universos simbólicos distintos implicaria temáticas distintas quando fazem literatura?

Não se pretende responder a nenhuns desses questionamentos definitivamente, contudo, acerca dos universos simbólicos específicos, não são raras as relações das mulheres com as epifanias da fertilidade; o exemplo mais comum disso é a mãe-terra e seus desdobramentos no mundo vegetal. Para levar adiante as indagações, eis três poemas de três autoras contemporâneas, todos elas, cada uma a seu modo, atualizando aquela temática:

(1)  Susanna Busato / “Exercício das facas”
exercício das facas: / com as faces voltadas / para dentro da carne / doar-se / até que a dor / conduza o ato, / até que o fato se consuma, / até que a aguda flor se foda / em talo e folha e ruínas

(2) Carolina De Bonis / “Rumo de abismos”
Subo degraus sem escada ouso / Dissolver nossos toques indivisos. / Me transmuto em muitas, / E isso não é fácil, / Como caminhar descalça / Renascendo musgos / Ervas dentre os pés / Desenhando caminhos / À possível lunação / Descascando aposentos / Primitivas grutas / Imersas embarcações / Interiores em frestas // Faço um pacto com a dor / Reinvento a casa / Crio um outro ritmo / Na transparência / Ao avesso do vento / Que balança as raízes / Fora da terra // Adentro em mim / Com vendas nos olhos / Ainda que não tenha / Labirintos previsíveis / Me renasço na beira / De abismos.

(3) Lilian Aquino / “De passagem”
Disse sem pensar muito / toda vez que eu passo aqui / lembro de você // uma ladeira / em paralelepípedos recém- / molhados pela chuva / do lado esquerdo a mesma / floricultura onde certa vez / comprei o vaso de / flores amarelas / na frente, a igreja // você tinha aquele jeito / de andar como se tivesse / uma pedra no sapato // Agora, ela anda descalça / pisando em / poças d’água // e ele vê no vaso / um cacto / e da janela / um terreno baldio

Em linhas gerais, na literatura feminina oscila-se entre discutir simbologias de, pelo menos, dois pontos de vista: (1) os símbolos seriam essenciais, oriundos de características propriamente femininas; ou (2) os símbolos seriam determinados historicamente. Essa resposta não é simples; talvez seja melhor verificar como ela surge tematizada na literatura do que arriscar respostas parciais, optando-se, assim, por analisar as expressões da crise entre aqueles dois pontos de vista em vez de procurar por respostas decisivas.    

Em “Exercício das facas”, de Susanna Busato, do livro “Corpos em cena”, 2013, flores e folhas expressam a simbologia vegetal com matizes eróticos, correlacionando-se no corpo da mulher seiva e sangue, caule e carne. Curiosamente, embora a poeta assuma tais símbolos realizando-se neles metaforicamente, tudo se conclui em “foda-se”, não importando se aquelas metáforas são essenciais ou historicamente construídas.

Já em “Rumo de abismos”, do livro “Passos ao redor do teu canto”, 2015, Carolina de Bonis faz variações de temáticas recorrentes em sua poesia. Para ela, as formas literárias do poema, em vez de perderem-se em si mesmas, permitem um retorno ao mundo das coisas; isso se evidencia quando a natureza, na metonímia dos musgos e das ervas, invade seu corpo entremeando os dedos de seus pés descalços, desencadeando metáforas no restante do corpo, entre elas, as grutas. Trata-se da mesma simbologia em torno da natureza feminina, da terra e da vegetação, entretanto, novas metáforas permitem à poeta libertar-se do que seria supostamente essencial, inserindo-a historicamente, pois as raízes são balançadas fora da terra pelo vento.

Por fim, no terceiro exemplo, o poema “De passagem”, de Lilian Aquino, do livro “Pequenos afazeres domésticos”, 2011, o amadurecimento feminino tem por cenário floriculturas, vasos de flores e de cactos, isto é, o mundo vegetal. Em dois momentos da vida, quando antes havia flores amarelas e uma igreja, depois, um cacto e o terreno baldio, formam-se nos versos correlações entre experiências pessoais e mundos simbólicos, as quais são superadas seja pela indiferença, pois a moça pisa descalça nas poças d’água, seja pelo contato com mundo, sentido diretamente com os pés descalços.

Dessa maneira, a literatura feminina brasileira contemporânea participa de discussões do universo das mulheres, construindo-se entre mundos simbólicos e papeis sociais historicamente determinados. Há escritoras, no entanto, discutindo explicitamente o feminismo em seus versos; nos poemas dedicados a Eunice, de Alessandra Safra, a emancipação da mulher é problematizada na relação lésbica entre duas mulheres socialmente distintas, permeada de fetiches eróticos e de sadomasoquismo, em que a mocinha masoquista liberta a narradora dona de si e supostamente emancipada. Eis um dos poemas dedicados a Eunice, do livro “Dedos não brocham”, 2012:

eunice era dessas poucas meninas: cheirava chulé, /recebia contente tapas na cara, lambia os pés solas / de sapatos. tremia excitada se cuspisse em sua / boca-latrina ou a tratasse por termos relés. Babava / pelas bocas quando varas sibilavam no ar calado / em pele suplicadora. adorava ser traída e ouvir / miudezas do sexo com outras. menina feliz, assim / mesmo nada feminista. dava-se como lixeira e / procurava castigos. um paradoxo de emancipação / feminina? eunice dócil e servil se me dá de / presente disponho como objeto de masturbação. / ela era toda sem travas, destravava minhas taras, / recebia em si minha fome. ela era (nada) ordinária, / encantava seus cílios longos de vaca mansa a / lamber-me com devoção.

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