EUA

Neve no Texas mostra a fria verdade: o neoliberalismo não funciona

Em um dos mais ricos estados norte-americanos, as autoridades declaram publicamente que o povo deve morrer para os capitalistas lucrarem

(*) Por Adriana Machado, correspondente em Nova Iorque

No dia 15 de fevereiro, uma forte tempestade de neve cobriu o Texas, estado americano onde o culto ao mercado livre impera sobre o governo. As politicamente poderosas empresas de energia deixaram 4 milhões de consumidores sem eletricidade em temperaturas abaixo de zero. Até agora são 80 mortos, mas o governo admite que o número total de mortes causadas pelo apagão pode levar meses para ser determinado. 

O Texas é o maior estado produtor e consumidor de energia do país, tem o segundo maior produto interno bruto e a segunda maior população. Temperaturas subtropicais e grandes riquezas minerais possibilitaram o desenvolvimento de uma das economias mais fortes do mundo. As grandes plantações de algodão movidas pelo trabalho escravo do século XIX gradualmente deram lugar à indústria de petróleo do século XX. Em “Assim Caminha a Humanidade”, considerado por alguns o “filme nacional do Texas”, James Dean e Elizabeth Taylor estrelam a saga da transformação de “cowboys” texanos em milionários do petróleo. O ganhador do Oscar de 1956 divulgou mundo afora o “estado de espírito” de liberdade e individualismo do Texas, o mito de que no Texas qualquer homem (ou mulher) com vontade, determinação e sorte pode se tornar um milionário. 

Pela lógica liberal, seria melhor para indivíduos e a economia em geral se empresas pudessem fazer o que bem desejassem: “As economias mais livres operam com comparativamente menos interferência do governo, confiando mais na escolha pessoal e nos mercados para decidir o que é produzido, como é produzido e quanto é produzido. À medida que o governo impõe restrições a essas escolhas, há menos liberdade econômica e menos oportunidade de prosperidade”, disse Fred McMahon, no sítio do Instituto de Liberdade Econômica do Fraser, em novembro de 2018. 

Esse constante e deliberado esforço em moldar ideias a favor do “empreendedorismo” e da livre concorrência de mercado tenta esconder a rápida e danosa formação dos grandes monopólios, consolidados há mais de 100 anos. Em Irving, no Texas, fica a sede da quinta maior empresa do mundo – uma das maiores responsáveis pela poluição mundial – a ExxonMobil. A herdeira da Standard Oil de John Rockefeller foi transformada em ESSO ainda em 1911, numa tentativa do governo federal de frear os monopólios. A gigante imperialista, com receita em torno de $264 bilhões de dólares, processou Cuba no ano passado por $280 milhões de dólares pela desapropriação promovida após a revolução de Fidel Castro. Ela não só se aproveitou do aprofundamento das leis de embargo contra Cuba por Donald Trump, mas também apoiou o golpe de estado na Bolívia, e hoje pressiona pela guerra contra a Venezuela e a privatização da Petrobrás. A tempestade no Texas forçou paralisações na produção. A ExxonMobil e outras grandes empresas de energia, para evitar danos nas refinarias, decidiram queimar parte da produção, liberando 3.5 milhões de libras de poluição extra. O benzeno tóxico, monóxido de carbono, sulfeto de hidrogênio e dióxido de enxofre formaram uma camada cinzenta que escureceu os céus no leste do Texas, visível por quilômetros.

Outro ícone da indústria de energia do Texas foi a Enron, um dos maiores e mais chocantes exemplos de corrupção corporativa da história do país, contado no documentário ENRON, Os Mais Espertos da Sala, de 2005. Enron era uma empresa de energia com sede em Houston, e foi pioneira na aliança das empresas de gás natural com Wall Street. Ken Lay, fundador da Enron, pressionou ativamente pela desregulamentação da indústria nas décadas de 1980 e 1990. A Enron entrou em colapso em 2001 quando anos de fraude contábil se tornaram públicos e a empresa declarou falência.

As privatizações de energia no Texas começaram nos anos 90. Mais de duas décadas depois, em 2019, o senador republicano Ted Cruz citou as privatizações como principal fator para o recorde da produção de petróleo, sugerindo que outros estados seguissem a mesma política. No entanto, depois da recente tempestade, James K. Galbraith, economista da Universidade de Austin, denunciou “a fria verdade: o congelamento do Texas é a catástrofe do mercado livre”. 

A população sem energia, sem água, sem possibilidade de locomoção, e sem qualquer socorro – em meio à pandemia – morreu em suas casas, por frio, por envenenamento por monóxido de carbono tentando se aquecer em carros, em incêndios domésticos por falta de atendimento do corpo de bombeiros, e em acidentes em estradas congeladas. 

A administração das grandes prisões do estado, que frequentemente usa o trabalho dos presos sem pagar nada por isso, abandonou a população presidiária. Presos que, meses antes tiveram que protestar para receber míseros $2 dólares a hora para carregar o grande número de mortos pelo COVID-19, foram esquecidos em instalações sem aquecimento, com comida inapropriada para o consumo, e encanamentos estourados com esgoto invadindo as celas. “Se eles não podem nos abrigar adequadamente, devem nos libertar”, disse Holli Wrice, por mensagem eletrônica ao Star Telegram, jornal de Fort Worth. “Do jeito que esta unidade está agora, devia ser uma liberação compassiva para todos. Estamos sujeitos a fezes, contaminação cruzada, más condições de vida, ainda com presos sofrendo por covid, sem aquecedor. É horrível. ”

A verdade é que o apagão – e as mortes – aconteceram, não por culpa da tempestade, rara no local, mas pela falta de responsabilidade das grandes empresas de energia, e a falta de fiscalização dessas empresas pelo estado. No verão de 2019, uma onda de calor extraordinária havia pairado sobre o Texas. A demanda de energia atingiu recordes, e a rede ficou por um fio. Discutiu-se sua estabilidade, e a necessidade de maior margem de reserva de energia. A reserva garante a estabilidade da rede, mas não dá lucro. As empresas decidiram por uma reserva mínima. O Texas é o único estado (dos que estão no continente) que não faz parte da rede elétrica federal – para evitar fiscalizações e impostos. Sem reservas ou apoio da rede federal, o estado ficou isolado e metade do território sofreu com a falta de energia.

Existem registros de três décadas de avisos de que a rede deveria ser preparada para invernos rigorosos, de acordo com documentos regulatórios. Como aconteceu com contaminação da água em Flint, Michigan, com a Vale do Rio Doce e a barreira de Brumadinho, em Minas Gerais, e em inúmeros outros casos pelo mundo, os diretores das empresas, com a conivência do estado, decidiram não fazer os reparos necessários, que garantiriam o abastecimento e a segurança de todos. Como o caminho para o maior lucro, a catástrofe, já que existe a certeza de saírem ilesos por isso. 

E não só os diretores saíram ilesos. Ted Cruz, aquele senador republicano, campeão do discurso a favor do estado mínimo, que também é ex-candidato à presidência, cujo pai diz ter sido torturado pela revolução cubana, julgou que poderia fugir da desagradável situação sem ser percebido. Como é de se esperar da burguesia em épocas de crise local, seja ela climática ou pandêmica, Cruz foi flagrado escapando com a família para um hotel de luxo em Cancún, no México. Com a atenção da imprensa e a ira da população em geral, ele retornou da viagem depois de 12 horas no México, culpando as filhas de 10 e 13 anos por sua decisão de abandonar os constituintes em meio à catástrofe. Recentemente, tentou recuperar sua imagem pedindo a regulamentação energética pelo estado.

Já o prefeito da pequena cidade de Colorado City, Tim Boyd, teve que se desculpar publicamente e deixar o cargo, após causar a fúria da população no Twitter, quando respondeu aos muitos pedidos de socorro de seus constituintes com uma birra: “Ninguém deve nada a você ou à sua família; nem é responsabilidade do governo local apoiá-lo em tempos difíceis como este! Afundar ou nadar é sua escolha! A prefeitura e os fornecedores de energia, ou qualquer outro serviço, não lhe devem nada!” A postagem já foi excluída, mas incluía também: “Apenas os fortes sobreviverão e os fracos morrerão.” E ainda: “Infelizmente, este é um produto de um governo socialista onde eles fazem as pessoas acreditarem que poucos trabalharão e outros se tornarão dependentes para receber esmolas.”

Como o Partido da Causa Operária sempre destaca, os capitalistas não costumam perder a oportunidade de explorar ao máximo a população. Apesar de todo o caos, a Ercot, empresa que controla a rede energética do estado, aproveitou que os contratos entre produtoras, distribuidoras e consumidores definem que o preço da eletricidade deve seguir as leis de oferta e procura, e que o consumidor sempre paga a diferença nessa conta. Como prática padrão durante emergências na rede, impôs um aumento de 10.000% ao preço da megawatt-hora, que foi de $30, para $9.000 dólares. Como se não bastasse, a Ercot manteve o absurdo aumento de preço em vigor por dias a mais do que o necessário, resultando em cobranças excessivas, de $16 bilhões de dólares. Algumas famílias tiveram suas finanças arruinadas por contas de luz que alcançaram $17.000 dólares, e terão que contratar advogados para enfrentar as gigantes na justiça para tentar corrigir o “erro”. 

Com 2.7 milhões de casos e mais de 47 mil mortes por coronavírus, o governador Greg Abbott anunciou depois da tempestade a “suspensão total da obrigação sobre uso de máscaras e reabertura da economia em 100%”, o que para muitos, pareceu uma decisão errática para distrair a atenção do público e da imprensa para além dos danos causados pela indústria energética.

Não é coincidência que a descrição da situação no Brasil por Rui Costa Pimenta, em sua Análise Política da Semana (06/03/21), é perfeitamente aplicável à situação do estado americano: “A administração pública de tipo capitalista (…) é, não apenas extraordinariamente ineficiente, como particularmente insensível aos problemas da população; ela está voltada exclusivamente para atender ao interesse dos grandes capitalistas”.

A única saída para o povo, tanto brasileiro, como americano, é a organização, a revolução, e a instalação de um governo operário.

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