Nas últimas semanas, a campanha descarada de promoção do golpista João Doria como o “salvador da pátria”, “rei da vacina” e “personificação da ciência contra o charlatanismo” chegou a um novo patamar. Numa operação conjunta, como quase sempre acontece, os principais órgãos da imprensa capitalista dedicaram artigos, colunas, manchetes e capas elevando Doria à condição de “herói” da nação e baluarte da vacinação do povo.
Essa campanha, como este Diário já ressaltou em inúmeras matérias, é algo puramente artificial e não encontra qualquer fundamento na realidade. A propalada vacinação de Doria é uma farsa. Consiste, antes de qualquer outra coisa, num golpe de propaganda, de marketing, destinado a espalhar a ideia de que o golpista Doria, ao contrário do outro golpista que ocupa atualmente a presidência da República, Jair Bolsonaro, figuraria como a grande força política na luta contra a pandemia do Covid-19.
A redentora vacinação organizada por João Doria tem a peculiar qualidade de não poder disponibilizar para as pessoas aquele elemento sem o qual ela mesma não existe, a saber, a própria vacina. O estado de São Paulo não está nem perto de possuir a quantidade de doses necessárias para imunizar a população. O show de exibição que supostamente marcou o início da vacinação em São Paulo, no dia 17 de janeiro, só foi possível devido à importação de um pequeno lote da vacina proveniente da China. O governo estadual não dispõe dos insumos necessários para produzi-la e tampouco possui a infraestrutura material capaz de garantir a produção autônoma do imunizante. A farsa fica ainda mais evidente quando se observa que a vacina com a qual Doria faz a sua propaganda, a CoronaVac, é a mais cara e a menos eficiente entre as principais vacinas já disponíveis.
A esquerda pequeno-burguesa, que desde o início da pandemia resolveu entregar toda a iniciativa contra o governo Bolsonaro e contra o Coronavírus nas mãos da direita, embarcou na campanha da direita tradicional e passou a elogiar o “empenho” de Doria, para não falar de Caiado e todos os demais governadores direitistas que derrubaram o governo do PT, prenderam Lula e garantiram a eleição fraudada de Bolsonaro. Para essa esquerda, Doria estaria do lado da “ciência”, ao passo que Bolsonaro, do lado das “trevas”. Doria seria o “democrata”, já Bolsonaro, o “fascista”. Outros, ainda mais “realistas”, pontuam que Doria seria “apenas” um neoliberal, e não um fascista como Bolsonaro.
É importante, no entanto, destacar um detalhe que passou despercebido para a maioria das pessoas e analistas no caso da vacinação de Doria, detalhe esse que expressa de maneira cristalina o caráter genocida e criminoso do governador “científico”.
Doria distribuiu o pequeno lote de vacinas que tinha à sua disposição tanto para os hospitais públicos como para os privados. Posto isso, surge a pergunta: e como os hospitais privados irão aplicar a vacina? O governador “civilizatório” determinou alguma diretriz, alguma ordem de prioridades ou algo similar, que os hospitais particulares deveriam seguir obrigatoriamente? Resposta: não. Os hospitais privados irão aplicar a vacina segundo o seu próprio critério. A entrega das vacinas aos hospitais privados não ficou condicionada a nenhum critério que guiasse a sua aplicação. Não se estabeleceu, portanto, que pessoas idosas ou de baixa de renda, por exemplo, devessem ter prioridade na vacinação. Doria, ao fim e ao cabo, concedeu total autonomia para que tais hospitais utilizem a vacina como bem lhes aprouver.
E quem serão os beneficiários das vacinas nesses hospitais? Hospitais como Albert Einstein e Sírio-Libanês irão vacinar quem? Os moradores da periferia, das favelas? Os moradores dos bairros operários? Serão o trabalhador da fábrica ou o professor do ensino público ou o carteiro? Quem sabe o lixeiro ou o motorista de ônibus? Não. Os beneficiários serão aqueles que se encaixam na seguinte definição: rico.
Diante do amplo e complexo debate sobre quem deve ser vacinado primeiro, o “humanitário” Doria já se adiantou e decidiu: os ricos devem estar na lista de prioridades. Se você é cliente do Albert Einstein, não se preocupe: abra a carteira, pague e receba a sua dose da CoronaVac. Já se você não tem condições de arcar com os exorbitantes valores dos hospitais privados, se dirija ao hospital público mais próximo e espere sentado ‒ repito: sentado, para não cansar – até a sua dose chegar.
Trata-se da mais pura e completa farsa. Uma vacinação sem vacina. Uma vacinação que é, em primeiro lugar, uma jogada de propaganda política tendendo, em última instância, às eleições de 2022. Uma vacinação que perpetua a concessão de privilégios para os privilegiados de sempre, a burguesia, os ricos.
É preciso denunciar intransigentemente a manobra que está em curso e dar uma resposta classista a ela.
Doria é um dos elementos mais repugnantes da política nacional. Desde que subiu ao governo, colocou em prática uma política de extrema-direita, de privatizações, de cortes de verbas em pesquisa na pandemia. Cortou UTIs quando todos sabiam que viriam uma segunda onda de contaminações ainda pior que a primeira. Doria é aquele que propôs fornecer ração de comida vencida para as crianças das escolas paulistas, é aquele que incentivou a letalidade policial e criou batalhões de “elite” no interior para matar a população pobre (o que levou as mortes pela polícia dispararem no estado), é aquele que defende a volta às aulas em plena pandemia e muitos outros ataques contra a população. Doria é responsável direto pelas mais de 50 mil mortes causadas pelo Coronavírus no estado, o que representa um quarto das mortes do todo o País.
Uma reposta de classe, independente, a essa manobra política da burguesia passa pela luta contra a política de frente de ampla, isto é, contra a política que busca colocar as direções da esquerda a reboque da direita tradicional (PSDB, MDB, DEM). É preciso ter claro que para lutar contra Bolsonaro, é preciso lutar igualmente contra João Doria e todos os golpistas. Entre Doria e Bolsonaro, não há contradições fundamentais. Os atritos e conflitos que presenciamos entre os dois expressam contradições secundárias, que não ultrapassam os marcos do bloco político que comandou o golpe de Estado de 2016.