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Victor Assis

Editor e colunista do Diário Causa Operária. Membro da Direção Nacional do PCO. Integra o Coletivo de Negros João Cândido e a coordenação dos comitês de luta no estado de Pernambuco.

O que queríamos?

Sérgio Camargo, a esquerda e a luta do negro (parte 2/5)

Série de artigos procura aprofundar a polêmica estabelecida em torno da homenagem da Fundação Palmares à princesa Isabel

Em minha coluna anterior, introduzimos a série de textos que serão publicados semanalmente sobre a luta do povo negro, partindo de algumas considerações feitas pela esquerda pequeno-burguesa em reação à iniciativa criminosa de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, em homenagear a princesa Isabel do Brasil. No texto de hoje, continuaremos a nossa discussão, dando atenção particularmente à revolução no Haiti.

II – O que queríamos?

Em nossa última polêmica, expusemos que, para todo um setor da esquerda brasileira, a abolição da escravidão não deveria ser comemorada de forma alguma — o que, conforme alguns chegaram a afirmar abertamente, significaria que não houve qualquer mudança na condição do povo negro quando comparada aquela época à de hoje. Essa hipótese, porém, é absurda, pois nos forçaria a concluir que não há diferenças significativas entre o modo com que os negros são tratados hoje e nos séculos anteriores.

Para demonstrar a profunda ignorância que está por trás desse argumento, inicio o texto de hoje apresentando alguns dados sobre as condições às quais o povo negro era submetido em seu passado escravocrata:

a) os escravos eram sequestrados em sua própria terra e levados à força para outro continente, sem qualquer possibilidade de contato com o seu povo

b) esses escravos sequestrados eram amarrados uns aos outros em troncos com pesadas pedras, para evitarem de correr e fugir

c) cerca de um milhão de escravos teriam morrido apenas no translado da África para as Américas

d) qualquer ato de indisciplina era respondido com um castigo duríssimo e cruel, incluindo a mutilação

Visto assim, de maneira concreta, percebe-se a nítida diferença entre uma situação e a outra. Reconhecer isso, no entanto, não é o mesmo que reconhecer que os negros vivam em pé de igualdade com os brancos hoje, nem tampouco que as classes dominantes da época sejam menos ou mais humanizadas que as de hoje. Mas sim que os diferentes ataques à dignidade do negro durante a escravidão eram o reflexo direto de um modo de produção que conseguiu se impor — o que nos leva à conclusão, portanto, de que a libertação que o povo negro buscava naquele período só pode ser compreendida quando nos limitamos àquele cenário.

Os métodos extremamente cruéis dos senhores de escravos são explicados pela necessidade destes em conseguir uma submissão total dos negros. A produção de cana-de-açúcar e das demais riquezas exigia um trabalho que ninguém faria se não fosse obrigado. Sair daquele regime de trabalho, nem que fosse para viver sozinho no meio de uma floresta tropical, permitia uma vida mais digna do que a que os senhores tinham a oferecer. A produção, não nos esqueçamos, era escoada na Europa, que contava com uma pilhagem gigantesca para poder se desenvolver plenamente. Qualquer empreendimento colonial que não lançasse mão de expedientes extremamente agressivos, como jornadas de trabalho de 16 horas diárias, não seria capaz de alimentar o Velho Continente e estaria fadado à falência.

São essas relações, portanto, que explicam as condições dos negros naquele período. Não fossem os castigos violentos, a separação dos negros que pertenciam às mesmas tribos e todo o tipo de tortura, os escravos se libertariam inevitavelmente. Isto é, abandonariam seus postos de trabalho ou obrigariam seus patrões a mudarem a maneira como os tratavam — qualquer um dos caminhos abalaria de maneira gigantesca a economia mundial.

Diante disso, é preciso compreender o que significa, de maneira concreta, a liberdade para os escravos. De acordo com a opinião da esquerda pequeno-burguesa, que entende a abolição oficial como uma completa farsa, a princesa Isabel deveria ter adotado uma série de medidas para garantir a sobrevivência dos negros após sua libertação. Seria essa, portanto, a essência da crítica ao fascista Sérgio Camargo. No entanto, isso corresponde a uma forma muito abstrata de entender os interesses reais dos escravos. Essa interpretação limitada pode ser encontrada no jornal Opinião Socialista de nº 589:

A abolição da escravidão não pôs fim ao racismo. Ao contrário, ao não vir acompanhada de nenhuma reparação, determinou que os negros continuassem tendo uma vida de miséria e racismo mesmo depois de extinta a escravidão.

O que queriam os escravos brasileiros? Quais as tarefas que estavam colocadas para eles? Ora, para responder a isso, basta olhar para a única experiência que deu certo de fato! Isto é, a única maneira de saber o que os escravos brasileiros queriam é estudar o que os escravos que conseguiram se libertar efetivamente conseguiram fazer. E esses escravos, apesar de todo o esforço feito pela burguesia para apagar isso da história, são os que fizeram a revolução do Haiti.

Conforme disse o historiador norte-americano James Walvin, “a história da escravidão na América é a história da luta ininterrupta dos escravos por sua libertação”. No entanto, a única vez em que essa luta foi levada até o fim foi no Haiti, quando os negros saíram vitoriosos de um processo que durou 12 anos e terminou em 1804. Suas consequências foram tais que fizeram os senhores temerem que uma nova revolução acontecesse a qualquer momento em algum pedaço do vasto território americano. Em 1807, três anos após a revolução, os britânicos e os norte-americanos viriam a decretar a abolição da escravidão, tamanho o receio de perder totalmente o controle de suas colônias.

Antes da revolução, no entanto, a exploração das colônias acontecia de maneira desenfreada. E foi justamente isso que criou as condições para que a revolução explodisse no Haiti. O território estava, na época, sob o domínio da França e representava 2/3 de todo o comércio exterior operado pelo império. A exploração dessa colônia, por sua vez, se dava ao mesmo tempo em que a França enfrentava uma duríssima concorrência com a Grã-Bretanha na região, que tinha a Jamaica como sua principal fonte de riqueza na América Central.

Para que se tenha uma ideia da dimensão em que se dava essa concorrência, o Haiti passou de ter, em 1720, cerca de 47 mil escravos, para ter ao menos 465 mil escravos em 1789. Quando, nesse período, a França entrou no processo de sua própria revolução, elevando ao máximo as contradições entre as classes sociais da época, essa quantidade enorme de escravos, que era subjugada por uma elite branca aliada a uma classe média mestiça que respondia diretamente a um império estrangeiro, a explosão social se tornou inevitável.

Nesse cenário de profunda crise do domínio imperial, as revoltas dos escravos haitianos logo formaram um exército de 40 mil combatentes negros, localizados sobretudo no norte do território. Rapidamente, a explosão tomou conta de toda a colônia e, sob o comando de grandes líderes como Toussaint Louverture — morto pelos franceses pouco antes da vitória definitiva — e Jean Jacques Dessalines, os haitianos puseram abaixo a escravidão e se tornaram independentes do império francês.

Nada melhor do que as palavras do tobaguiano Cyril Lionel Robert James para tratar da vitória do povo haitiano:

Os escravos derrotaram paulatinamente os brancos da ilha e os soldados da monarquia francesa, resistiram a uma invasão espanhola, a uma expedição britânica composta por 60 mil homens e a uma expedição francesa de tamanho similar comandada pelo cunhado de Napoleão Bonaparte. A derrota do exército de Bonaparte em 1803 desembocou na criação do Estado negro do Haiti, que perduraria até os dias de hoje.

Como pudemos ver no caso haitiano, os escravos não poderiam ter sua liberdade alcançada por meio de uma tabela de reivindicações junto aos dominadores franceses. Acabar com a escravidão não era uma medida puramente burocrática, tomada arbitrariamente pelos governantes locais, mas era, de fato, uma engrenagem que alimentava a economia de todo o planeta. Romper brutalmente com a dominação de conjunto por parte da Europa era uma condição necessária para a liberdade. Dito de outra maneira: ficou provado, pelo caso haitiano, que o que os escravos do continente queriam era tomar o poder.

Para que não haja dúvida de que o interesse dos escravos não era o de encontrar um acordo no interior dos regimes políticos aos quais estavam submetidos para que conseguissem alguns direitos específicos, destaco o que diz uma canção vudu cantada pelos haitianos à época:

Juramos destruir todos os brancos e suas posses — é melhor morrer do que quebrar esse juramento.

O que queríamos, nós, negros, de fato, não era apenas uma abolição formal da escravidão, nem tampouco alguma reparação social feita pela princesa Isabel. O que queríamos — entendamos claramente: o que precisávamos — e continua sendo um aspecto chave para o povo negro é a tomada do poder.

E é somente nesse sentido que tem valor comparar as condições de hoje e de ontem do negro. O que resistiu ao tempo não foram as formas dos castigos, que mudaram na medida em que o movimento revolucionário dos negros na América forçaram as classes dominantes a mudar. Tampouco resistiram as relações de trabalho, que também tiveram de ser readaptadas diante da ameaça que a revolução negra provocou. O que permanece até hoje é que o negro não tomou o poder para si, e é essa a tarefa, portanto, que permanece.

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