Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

Mouchette, de Robert Bresson, e a representação da barbárie

Em Mouchette, a violência se apresenta como parte do funcionamento regular da vida social

O cineasta francês Robert Bresson (1901–1999) entrou para a história do cinema mundial como um dos mais influentes do cinema contemporâneo. Atuando principalmente entre os anos 1940 e 1980, construiu uma obra marcada pela crítica ao psicologismo e ao naturalismo dramático de base aristotélica. Em oposição ao cinema narrativo tradicional, contaminado pelo olhar burguês sobre o mundo, Bresson desenvolveu um método formal baseado na contenção da atuação, no uso de não-atores, que chamava de “modelos”, na fragmentação dos corpos pelo enquadramento e na montagem como centro expressivo da linguagem.

Em muitos aspectos, lembra o teatro épico de Brecht, apesar de não ter reconhecido a filiação. A diferença está no fato de que seu olhar está mediado pelo catolicismo, que nunca abandonou, enquanto Brecht está vinculado à tradição marxista. Nesse contexto, os personagens de Bresson são vítimas de uma sociedade hipócrita. Cordeiros de Deus em sacrifício. O mundo como um purgatório. Isso não impede uma crítica da obra a partir do materialismo histórico.

Entre seus principais filmes estão Diário de um Pároco de Aldeia (1951), Um Condenado à Morte Escapou (1956), Pickpocket (1959), Mouchette (1967) e O Dinheiro (1983). Seu projeto foca na representação da experiência de vida daqueles que estão nas condições mais frágeis no capitalismo. Em muitos de seus filmes, vemos personagens isolados, inseridos nas condições mais degradantes de exploração. Mouchette ocupa um ponto central na filmografia de Bresson. Inspirado em um conto do escritor Georges Bernanos, o filme aprofunda a investigação do diretor sobre personagens esmagados por estruturas sociais intransponíveis. 

Fotografado em preto e branco, sem trilha sonora incidental, o filme acompanha alguns dias da vida de uma adolescente pobre na zona rual da França dos anos 1960. Com o pai alcoólatra e a mãe gravemente doente, Mouchette (Nadine Nortier) vive uma vida miserável. Na escola, é alvo de humilhações constantes; em casa, enfrenta negligência, dureza e sobrecarga. É ela, por exemplo, que precisa cuidar do bebê e das tarefas domésticas. Na comunidade, vive cercada por indiferença e hostilidade. Sua rotina é feita de pequenos deslocamentos, tarefas domésticas, constrangimentos e silêncios.

Ao longo dessa trajetória, a personagem atravessa uma sucessão de situações aparentemente banais, mas que, pouco a pouco, revelam o completo esmagamento de sua existência. Sem proteção, apoio e qualquer horizonte de futuro, sua experiência é marcada pela repetição de um cotidiano hostil até o esgotamento final.

A força do filme está no fato de que ele trata o sofrimento como a expressão objetiva de uma posição social determinada. A protagonista não sofre por fragilidade subjetiva, mas porque ocupa o ponto mais baixo de uma hierarquia social rigidamente organizada. A infância, aqui, não é uma categoria afetiva ou simbólica: é uma posição econômica de extrema vulnerabilidade, totalmente dependente de instituições que falham sistematicamente.

A família aparece não como refúgio, mas como espaço materialmente inviável. O pai não é construído como vilão moral isolado, mas como homem degradado pela miséria, também esmagado pela mesma ordem econômica que destrói a filha. A escola, longe de funcionar como instância de mobilidade social, atua como aparelho de disciplina, exposição e humilhação. A comunidade, por sua vez, não corrige essas falhas: apenas as administra pela via da fofoca, do isolamento e da indiferença.

A forma do filme corresponde diretamente a esse diagnóstico social. A neutralização da atuação e o esvaziamento da palavra impedem o espectador de se reconciliar emocionalmente com a dor alheia. Não há empatia catártica, nem descarga sentimental. O sofrimento não é espetáculo: é condição cotidiana e permanente. A repetição exaustiva de gestos, tarefas e deslocamentos reproduz uma lógica de alienação social sem fim.

O corpo da protagonista surge como força de trabalho, expropriado de qualquer soberania simbólica. Ele carrega peso, executa funções, atravessa espaços que não lhe pertencem. O tempo da infância não existe porque já foi capturado pela sobrevivência. Não há espaço para desejo, jogo ou elaboração subjetiva do sofrimento.

Um dos aspectos mais perturbadores do filme é a recusa em transformar a violência em evento excepcional. A violência se apresenta como parte do funcionamento regular da vida social, como desgaste progressivo. Com isso, o filme, ao não se apoiar em uma tragédia individual redentora, revela a exploração como prática intrínseca do sistema.

O desfecho, aparentemente um suicídio, não é um gesto subjetivo elaborado, mas o resultado do próprio capitalismo, que simplesmente se desfaz daqueles que estão sobrando e não têm meios de sobreviver. Nesse contexto, o filme representa a barbárie, apesar de seu subtexto católico. Quando todas as instâncias de mediação falham, o que resta não é escolha, mas colapso. O final não rompe com a lógica do filme: apenas a conclui.

Ao eliminar qualquer romantização da pobreza ou da infância, Bresson constrói uma das críticas mais contundentes à naturalização da miséria. Mouchette não oferece consolo, superação ou promessa de futuro. Ele expõe, sem alívio, uma engrenagem social que transforma o sofrimento em ruído de fundo da vida cotidiana. É justamente por isso que o filme permanece atual: a estrutura que ele denuncia segue ativa.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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