O ultradireitista Javier Milei perdeu de longe a eleição provincial mais significativa, que abrange quase 40% da votação nacional. Em uma eleição atípica, dividida pela primeira vez desde 1983, os eleitores deram a vitória ao peronismo (47% contra 33%). Foi uma vitória que não era obtida desde 2005 em território de Buenos Aires. Uma verdadeira catástrofe para o governo. A vitória peronista foi, sem dúvida, facilitada pelos indícios de falência do partido de Milei, tendo se originado de correntes militantes peronistas da base do partido.
Da sacada de sua casa, onde cumpre prisão domiciliar, Cristina Kirchner mostra que continua com apoio popular. O fato de o partido La Libertad Avanza (LLA) ter fracassado politicamente antes da derrota nas eleições deveu-se à sua exagerada autoconfiança, por acreditar que era invulnerável às iniciativas da oposição ou aos fracassos econômicos. O escândalo de corrupção às vésperas da eleição revelou a essência do governo, tão ou mais corrupto que os anteriores. Foram divulgados áudios que comprovam que a irmã de Milei, que é chefe do gabinete do governo, recebe 3% das despesas de saúde do Estado. Foi grande a decepção para aqueles ingênuos que acreditavam que Milei realmente seria diferente, já que ele produziu uma narrativa de crítica ácida sobre a “casta”. A população descobriu, de repente, que o governo Milei também faz parte desta “casta”.
É a economia, estúpido!
Outro fator importante para a derrota foram os sucessivos desastres econômicos do governo, que mal eram ocultados pela propaganda governamental e do próprio imperialismo, via FMI, que produziu um discurso sobre os sucessos econômicos de Milei. É bom lembrar que semelhante derrota pode ocorrer com o candidato da direita brasileira, Tarcísio Freitas, que afirmou várias vezes que Milei seria o modelo de seu governo.
O discurso de Milei de que “tudo vai conforme o planejado”, que se pretendia blindado diante das críticas, sofreu um grande abalo com a situação real de crescente paralisação do consumo e de muitos ramos da produção. Os próprios arautos do governo, os “mercados”, começaram a mostrar sua desconfiança comprando milhões de dólares no atacado, não obedecendo a ordem do governo para que eles vendessem. Os detentores de títulos e ações deixaram de dar sustentação à atual gestão e o risco-país atingiu uma elevação considerável, a bolsa teve queda expressiva e houve grande desvalorização do peso. Tornou-se evidente o problema de uma economia que se endivida cada vez mais, vide o generoso empréstimo do FMI, e a escassez da moeda norte-americana. Problemas estruturais que levaram o governo a entrar em conflitos com os bancos e grupos de investimento, seus antigos fortes aliados.
O ministro da Economia, Luis Caputo, e o guru da escola austríaca na presidência mostram agora sua verdadeira face de incompetência. De repente, muitas vozes se ouviram pedindo um ajuste da política econômica, exatamente para impedir o desastre eleitoral, que foi pior que o projetado pelas previsões mais pessimistas.
A voz das ruas
O governo desde o início não se importou com os protestos sociais, reservando-lhes cada vez mais o desprezo e uma feroz repressão. Além de implacáveis, os policiais de Milei foram empoderados por farta propaganda em favor dos “heróis da pátria”. Eles não só atacam os manifestantes como lhes dirigem ofensas e injúrias. O massacre dos aposentados, cuja luta não se arrefeceu diante da sordidez dos ataques, cresceu a cada quarta-feira contra um governo insensível. As vozes da oposição continuavam fracas diante da opressão do governo e da imensa campanha que a mídia lhe dá. No país onde um grupo de mães de desaparecidos pelo regime militar enfrentou a pior das ditaduras, agora as vozes se levantaram, apoiadas em bengalas ou pouco protegidas por cadeiras de rodas, conseguindo obter o apoio de corações e mentes.
Aposentados, deficientes e outras expressões da violenta política de Milei contra todos os argentinos, lideraram o caminho para os protestos de rua. Eles responderam e respondem às agressões implacáveis contra suas necessidades mais básicas. Os trabalhadores do hospital Garrahan, em uma greve memorável, seguiram o mesmo caminho, sensibilizando grande parte da sociedade para a defesa da saúde pública. Nas fábricas que fecham ou ameaçam fazê-lo, ocorreram manifestações e greves, incluindo várias no território de Buenos Aires.
Esse clamor da população mais vulnerável se juntou a outros, tornados vulneráveis pela política de descalabro social de Milei. As demandas finalmente conseguiram sensibilizar o Congresso, que começou a aprovar leis que iam contra a vontade do governo. Primeiro, foram aprovadas medidas para pelo menos mitigar o sofrimento dos aposentados, deficientes e crianças doentes. Em seguida, foi aprovado o financiamento universitário, principal reivindicação de manifestações estudantis e populares que conseguiram grande adesão.
Ao contrário da esquerda brasileira, que tem verdadeira obsessão pela política de conchavos nos gabinetes, o poder legislativo resolveu ouvir as vozes das ruas, usando-as em muitos casos como instrumento de um ataque eficaz e contundente ao governo, deixando de continuar apoiando um governo que nada entregou, depois de um ano e meio no poder. O virtual sequestro das finanças públicas das províncias e a má vontade do governo em negociar com as lideranças locais o apoio ao governo nas eleições provinciais tiveram um papel importante.
A vitória popular
A unidade dos peronistas em torno do governador Axel Kicillof, que desenvolveu uma ampla política de debate e articulação em relação às lideranças políticas e os movimentos de trabalhadores, foi o principal fator da vitória sobre o Governo Milei. Ainda é cedo para saber quais são as mudanças políticas que ocorrerão em nível nacional, mas é certo que Kicillof não é Sérgio Massa, vinculando-se dentro do peronismo ao chamado kirchnerismo. Essa corrente tem adotado um programa nacionalista e de negação do neoliberalismo, ou seja, de confronto com o imperialismo. A campanha da vitoriosa aliança Fuerza Patria se concentrou em slogans como “Devemos parar com Milei”.
A comemoração da vitória por uma massa popular eufórica na frente da casa da líder Cristina Kirschner, onde está presa, mostra que a prisão de líderes, que é uma arma clássica do imperialismo, haja vista a prisão a que foi também condenada a líder da extrema direita francesa e muitos outros, não impede que continuem a atuar politicamente e ter um papel até mais importante na mobilização popular.
Apesar do grande apoio internacional ao governo, o apoio decidido da burguesia argentina, em especial o grande capital associado ao capital estrangeiro e o apoio do Imperialismo, o Governo Milei parece indicar que ruma à derrota. A grande prova serão as eleições gerais provinciais no final de outubro, que decidirão o quadro nacional de forças no Congresso. Milei anunciou uma autocrítica, mas logo voltou atrás e afirmou que não mudará um milímetro do seu programa econômico. Certamente, ele também vai aprofundar a repressão e os desmandos, aproveitando a onda criada por Trump em relação aos imigrantes. Mas não há dúvida que foram as lutas da classe trabalhadora, dos pobres e dos vulneráveis as responsáveis pelo resultado eleitoral. A partir de agora, não passará mais despercebido que o experimento de La Libertad Avanza está encurralado.
O charme tétrico do presidente e seus seguidores está quebrado. A luta luminosa do povo argentino tem o caminho aberto mais uma vez. Articulação, unidade, solidez podem não ser apenas esperança fervorosa, mas realização imediata.
O grande impasse da esquerda argentina
O governo de Milei se propôs desde o início a desmantelar as organizações sociais, cortando os fundos públicos que recebiam, mas acima de tudo, perseguindo-as. Em poucos meses, as ruas da capital do país foram “liberadas” da maioria das mobilizações piqueteiras, e outras manifestações foram reprimidas ou limitadas. É verdade que os movimentos populares continuaram na disputa, com algumas mobilizações muito massivas como, por exemplo, em defesa da universidade pública em 23 de abril e 2 de outubro de 2024, e duas greves gerais convocadas pelas centrais sindicais em 24 de janeiro e 9 de maio daquele ano. No entanto, a maioria das organizações e movimentos sociais viu sua atividade retraída e sua massividade reduzida, concentrando-se novamente na batalha diária para contribuir com a reprodução da vida nos bairros populares. Os setores populares organizados enfrentam uma deterioração progressiva em sua capacidade de sustentar sua resistência ao cerco permanente que sofrem há uma década.
Nesse quadro geral de avanço da austeridade e da repressão, poderíamos afirmar que na Argentina a esquerda levou um choque diante da eleição do governo Milei. Diante do cerco à classe trabalhadora de todos os lados, que já existia há anos, instalou-se uma crise permanente. Os exemplos históricos de uma atividade revolucionária, como a Comuna de Paris e a Revolução de Outubro, a Revolução cubana de 1959, o Maio francês ou o Cordobazo argentino de 1969, a história do Caracazo ou do “Que se vayan todos” de dezembro de 2001 não estabelecem vínculos com a história presente. A memória destes grandes momentos deve nos permitir refletir sobre a práxis histórica da classe trabalhadora, sobre seus triunfos e derrotas, seus sonhos e utopias. Deve ser um instrumento que nos sirva para aprender a lutar, nos permita sair do atoleiro capitalista que nos cerca e enfrentar o sonho totalizante da nova direita, que se apresenta como a única força política que ousa propor um futuro.
As transformações pelas quais o capitalismo contemporâneo está passando, particularmente nos países capitalistas dependentes, e especialmente na Argentina, nos convidam a registrar as mudanças no ser social e, portanto, na consciência coletiva. É verdade que na Argentina não é novidade que a esquerda enfrenta dificuldades para conquistar vontades entre o povo. Ter as “ideias certas” não garante que o sujeito da revolução não seja questionado, ainda mais se o peronismo se tornou historicamente o marco para a interpretação política de uma parte importante das classes populares. Nas últimas décadas, em sua versão social-democrata kirchnerista, o peronismo buscou se tornar a única esquerda possível. É claro que essa “esquerda” reformista nada mais é do que um neoliberalismo progressista. Não procura ultrapassar os limites do que é possível, mas apenas se adapta a eles. Nessa modalidade, a ação da esquerda deve ir além da retórica e dos caminhos conhecidos e fracassados.
A Politização da raiva
O que precisamos é buscar nas lutas da classe trabalhadora aquilo que acrescenta, multiplica e, portanto, funciona como um catalisador para mais luta. A chave é encontrar novos horizontes de resistência que articulem raiva e indignação diante de um mundo cruel e injusto, diante do ódio que, por vezes, a direita consegue condensar de forma tão eficaz. É preciso saber que a revolução social é construída a partir de baixo, na luta e através da luta. A luta como ação prática deve buscar na ação coletiva aquelas raízes de verdade que estão escondidas pelo senso comum. É a partir da situação concreta da classe trabalhadora que a verdade da opressão e exploração pode ser encontrada. Não basta apenas descrever, é preciso sentir.
Nesse sentido, para sair da inércia em que as organizações populares entraram como resultado do desespero devido ao avanço da ultradireita, devido ao efeito da violência e da perseguição, e devido à falência da estratégia de integração neodesenvolvimentista ao Estado é preciso lutar. Não lutar não é uma opção.
Se há uma coisa que chama a atenção hoje, é a direita falando sobre o comunismo como um fantasma que assombra o mundo, repetindo o Manifesto Comunista. Após a crise global de 2008 e a crise da pandemia de 2020, o capital recorre sistematicamente à retórica da guerra fria para tentar superar o pânico causado pela incerteza radical desta época. Este é o ponto de partida para um novo ciclo de lutas radicais.
A esquerda deve entender que a era atual, apesar dos obstáculos, é uma era de guerras e revoluções. Ou seja, é preciso recuperar a disposição de lutar e resistir. Temos que negar a aparência dos fenômenos capitalistas e buscar sua essência. Para transformá-la radicalmente. A revolução, como Marx dizia, é uma velha toupeira. Ela permanece viva debaixo da terra, criando túneis, desvios, fendas. Mas ela inevitavelmente sobe à superfície de tempos em tempos, provocando grandes transformações.
A situação da Frente de Esquerda Argentina
O voto pela Frente de Esquerda e Unidade dos Trabalhadores (FIT-U) foi novamente reduzido, com os partidos da frente tendo dificuldades em superar um espaço eleitoral de cerca de 5% dos votos nessa eleição. Apesar de direcionada cada vez mais para o plano eleitoral, e com uma política centrada no parlamento burguês, esta frente não consegue resultados eleitorais expressivos e adota uma política no movimento sindical e popular que não consegue romper seu isolamento das massas trabalhadoras, 14 anos após sua formação.
A crise do governo de Milei só se aprofunda e é urgente propor um caminho de ruptura com os planos do FMI e submissão ao grande capital financeiro e extrativista que só radicaliza o saque e a decadência nacional. Hoje, eles estão enfraquecidos e podem ser derrotados.
Mas para isso é preciso construir uma forte força orgânica da classe trabalhadora e grandes correntes classistas nos sindicatos que conquistem a capacidade de lutar para derrotar a extrema direita e o peronismo, que permanece uma força burguesa e em grande parte vinculada ao imperialismo. No imediato, é grande a necessidade de organizar as forças a partir de baixo, de forma democrática, auto-organizada e coordenada. É necessário também unificar as organizações sindicais, sociais e estudantis, uma verdadeira unidade de luta seja em greves nacionais ou movimentos populares, em torno de uma frente única e combativa.
Trata-se de vincular cada uma das lutas com a necessidade de darmos passos para a construção de um grande partido da classe trabalhadora fortemente enraizado em todos os locais de trabalho, em todos os bairros e locais de estudo, que lute com a força necessária por um programa realmente revolucionário, que aponte para uma saída da crise de acordo com os interesses da classe trabalhadora argentina.





