Ricardo Rabelo

Ricardo Rabelo é economista e militante pelo socialismo. Graduado em Ciência Econômicas pela UFMG (1975), também possui especialização em Informática na Educação pela PUC – MINAS (1996). Além disso, possui mestrado em sociologia pela FAFICH UFMG (1983) e doutorado em Comunicação pela UFRJ (2002). Entre 1986 e 2019, foi professor titular de Economia da PUC – MINAS. Foi membro de Corpo Editorial da Revista Economia & Gestão PUC – MINAS.

Coluna

Base de Alcântara: um território ocupado pelos EUA

Imperialismo quer ser o único a determinar quem usará a base e como ela será empregada

Em 18 de março de 2019, os governos de Bolsonaro, do Brasil, e de Trump, dos Estados Unidos, assinaram o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), que regula o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) por parte do governo norte-americano e de empresas desse país. Esse é o grande crime de Bolsonaro: ter entregado ao imperialismo norte-americano uma parte estratégica do território nacional, sem nenhuma contrapartida ou possibilidade de o Brasil obter transferência de tecnologia dos EUA. O acordo é uma farsa: não há equivalência entre as partes, mas apenas total submissão do Brasil aos interesses estratégicos dos EUA, que se tornaram uma potência ocupante da região, assim como ocorre na Base de Guantánamo, em Cuba, ou na ocupação de Gaza por “Israel”.

Embora o AST preveja que o governo norte-americano e empresas do país utilizarão o CLA apenas para lançar foguetes e satélites desenvolvidos com tecnologia norte-americana, e que o Brasil receberá uma compensação monetária por isso, na verdade trata-se de uma ação do imperialismo para se apossar de parte de nosso território para uso estratégico — e possivelmente militar. Tanto é que, depois de seis anos, o Brasil pouco recebeu dos EUA como contrapartida monetária, pois os norte-americanos mantêm a base em funcionamento mínimo, embora ela comporte o lançamento diário de foguetes, inclusive múltiplos. Como não é utilizada comercialmente, não gera a renda prometida pelo então Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, que afirmava que o Brasil poderia ter arrecadado 3,9 bilhões de dólares nos 20 anos anteriores ao acordo. Se isso fosse verdade, em seis anos o Brasil deveria ter recebido 1,2 bilhão de dólares — o que não aconteceu.

A subutilização da base para fins comerciais faz parte da estratégia dos EUA de não beneficiar o Brasil. Os EUA temiam que o Brasil utilizasse a renda obtida na base para produzir seus próprios foguetes, o que seria perigoso, pois o Brasil poderia querer retomar a base para o lançamento desses foguetes.

Alguns podem pensar que Alcântara não tem apelo comercial. Mentira. Ela está a apenas 2° de latitude sul. Não existe, no mundo, lugar mais favorável para lançamentos espaciais do que Alcântara. Por exemplo, a base europeia de lançamento de foguetes, na Guiana Francesa, está a quase 6° de latitude. Um mesmo foguete lançado da Flórida leva 35% menos carga do que se fosse lançado de Alcântara. Se o foguete pode levar 100 kg lá, aqui leva 135 kg — o que significa maior economia de combustível.

Outra grande qualidade de Alcântara é que ela está à beira da Baía de São Luís, no Maranhão. Isso permite que o foguete seja lançado em direção nordeste, indo rumo ao Equador. Já na Flórida, o foguete precisa ser lançado para o sul, num ângulo de 102°, apontando para o leste, porque há risco de cair em área habitada caso aconteça algum defeito. Alcântara não tem esse problema — qualquer defeito, o foguete cai direto no mar. Não existe esse risco.

Além disso, a menor temperatura já registrada em Alcântara foi de 18 °C. Já em Cabo Canaveral, a mínima registrada foi de –7 °C, no dia em que o ônibus espacial Challenger explodiu, em 1986. Isso ocorreu por causa do frio, que deixou os anéis de borracha rígidos.

A longa trajetória dos crimes contra a soberania nacional

O acordo de 2019 não é o primeiro feito em torno do uso do CLA. Em abril de 2000, o governo Fernando Henrique Cardoso assinou um acordo também com os EUA, na época do governo Clinton. As cláusulas leoninas — exemplo de dominação colonial — já estavam previstas nesse crime de lesa-pátria do governo FHC, que criou uma coleção deles. Por isso mesmo, em 2001, um Congresso que aprovou muitas barbaridades do governo FHC não teve coragem e impediu o acordo, com a justa alegação de que ele feria a soberania nacional.

Em 2002, foi firmado um acordo surreal com a Ucrânia, que já apresentava sérios problemas econômicos, mas o governo FHC insistiu em prejudicar novamente o Brasil. Pelo acordo, seria criada a Alcântara Cyclone Space, empresa binacional com o objetivo de comercializar e lançar satélites utilizando-se da tecnologia de foguetes ucraniana e da base de Alcântara. Tecnologia ucraniana? Alguém já ouviu falar disso? Lá estavam de novo as cláusulas leoninas, depois usadas pelos EUA. Também houve pressão do governo norte-americano para que os ucranianos não transferissem tecnologia ao Brasil. A colaboração com a Ucrânia, no entanto, não impedia o governo brasileiro de procurar outras parcerias, nem colocava obstáculos quanto à utilização do dinheiro obtido com o aluguel da base.

Esse acordo com a Ucrânia foi muito suspeito. Em 2002, o presidente da Ucrânia era Leonid Kuchma, que governou o país de 1994 a 2005. Kuchma foi anteriormente ligado ao Partido Comunista da URSS, mas, após a independência da Ucrânia, adotou uma postura equilibrista à la Lula. Em 1997, assinou uma Carta de Parceria com a OTAN. Em 2002, anunciou oficialmente o início do processo de adesão à OTAN. Ao mesmo tempo, manteve fortes relações econômicas com a Rússia, inclusive assinando tratados de cooperação.

O mais suspeito, no entanto, foi o estranho acidente ocorrido em 2003 na base de Alcântara, quando um foguete brasileiro explodiu e matou vários engenheiros e cientistas brasileiros. O acidente foi explorado pela mídia, sempre interessada em mostrar a “incompetência” brasileira diante dos “excelentes estrangeiros”. Todo mundo sabe que a tecnologia brasileira era de grande excelência, e os motivos do acidente nunca foram explicados. O acidente veio a calhar para os EUA: era uma grande oportunidade de liquidar o nascente programa espacial brasileiro, no momento em que o governo Lula, eleito em uma plataforma nacionalista, poderia querer expandi-lo e fazer associações perigosas com Rússia e China. Infelizmente, o governo Lula não era tão nacionalista assim e desacelerou o programa. O acordo com os ucranianos foi cancelado em 2015 pelo governo Dilma Rousseff e, entre 2018 e 2019, a empresa binacional foi definitivamente sepultada nos governos Temer e Bolsonaro.

As Cláusulas Leoninas do Acordo

O atual Acordo de Salvaguardas Tecnológicas é muito semelhante ao assinado pelo governo FHC. Isso mostra que, por trás da verborragia da extrema direita, está o mesmo espírito entreguista de FHC. A raiz do mal é a mesma: o neoliberalismo e o alinhamento ideológico ao “Ocidente”. O objetivo do acordo, mostrado logo no Artigo I, é exatamente o mesmo: evitar o acesso ou a transferência “não autorizada” de tecnologias dos Estados Unidos da América para o Brasil.

É estabelecida a criação de dois tipos de áreas especiais: as “áreas controladas” e as “áreas restritas”. É uma mistura de colonialismo europeu com apartheid israelense. Nas áreas controladas, o acesso é controlado pelos governos brasileiro e norte-americano — mais ou menos o que acontece com a Autoridade Palestina e “Israel” na Cisjordânia. O governo brasileiro também controla, junto com os EUA, o acesso de brasileiros. Já nas “áreas restritas”, pasmem: só será permitido o acesso de pessoas autorizadas pelo governo norte-americano. Mas não é só isso. Quem define de que tipo será o controle da base de Alcântara, adivinhem, é o Tio Sam ou seus prepostos, os “licenciados norte-americanos”, envolvidos em atividades de lançamento que nunca serão brasileiros.

Mas ainda tem mais. Além de exigir que qualquer transferência tecnológica seja feita apenas se os norte-americanos concordarem (e eles nunca concordaram, nem concordarão), o acordo impede que o Brasil invista seus ganhos financeiros oriundos do aluguel de Alcântara em programas de aquisição, desenvolvimento, produção, teste, liberação ou uso de foguetes ou de sistemas de veículos aéreos não tripulados, bem como em sistemas da Categoria I do MTCR. Mas o que são esses sistemas? Segundo o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR), sistemas da Categoria I incluem: veículos capazes de transportar carga útil de pelo menos 500 kg e com alcance mínimo de 300 km. Esses sistemas incluem mísseis balísticos, veículos lançadores de satélites (VLS) ou foguetes-sonda com capacidade militar ou de uso misto.

Por fim, o AST também proíbe que o Brasil negocie futuros acordos que envolvam o lançamento de foguetes em Alcântara com países que não fazem parte do MTCR.

O que o imperialismo quer?

Em primeiro lugar, os EUA impõem ao Brasil a proibição da transferência de tecnologia aeroespacial — e não apenas da tecnologia norte-americana, mas de qualquer outra. Os EUA não consideram que o Brasil seja capaz de produzir tecnologia aeroespacial própria. No Artigo I, há a declaração de que o objetivo é “(…) evitar o acesso ou a transferência não autorizados de tecnologias não relacionadas ao lançamento (…)”.

Por outro lado, o imperialismo quer ser o único a determinar quem usará a base e como ela será empregada. É explícito que não haverá repasse de capacidades científicas e de engenharia para que o Brasil retome a construção dos seus próprios VLS. Além disso, o “acordo” impede a transferência de recursos oriundos do aluguel da base para a pesquisa científica nacional autônoma diretamente relacionada à construção de um VLS nacional. Ou seja: o Brasil entrega a base para ser utilizada pelos EUA da maneira que quiser, e os EUA não permitem o acesso de brasileiros à base, nem o uso da base pelo próprio Brasil — e ainda por cima determinam onde não poderão ser gastos os recursos obtidos pelo aluguel da base. É UM ABSURDO COMPLETO! Ou melhor: é um colonialismo espacial do século XXI!

A humilhação a que os norte-americanos submetem o Brasil não tem limites. Já vimos que, pelo acordo, o governo brasileiro deve identificar todos os seus representantes, e a base significa, na prática, um território norte-americano incrustado no Maranhão, ao qual brasileiros não terão acesso. Mas tem mais.

Países que sejam aliados dos EUA e que estejam aprofundando os laços com o Brasil terão acesso privilegiado à base. Como é o caso de quem? “ISRAEL”! A base de Alcântara pode estar sendo usada militarmente em favor da entidade sionista responsável por milhares de mortes de palestinos! Mas ainda tem mais.

Pelo “acordo”, o governo brasileiro tem o dever de auxiliar na busca de destroços em todo o seu território. Deverá enviar órgãos de polícia e prestação de socorro emergencial, porém estes deverão ser acompanhados por norte-americanos nas áreas restritas — e deverão devolver qualquer material recolhido para o governo dos Estados Unidos, bem como quaisquer fotografias tiradas por esses órgãos e descrições dos equipamentos recuperados em território brasileiro. O Brasil é reduzido ao papel de lixeiro dos EUA — e esse lixo deve ser de uso exclusivo do governo norte-americano!

O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas — ou a lei de escravidão do Brasil aos EUA — também impõe ao Brasil limitações na busca por parceiros alternativos aos Estados Unidos em relação a Alcântara. Ou seja, o Brasil está proibido de buscar parcerias com países como a China, que vem desenvolvendo um programa espacial de altíssima qualidade e que busca cooperação em diversos países pelo mundo. Finalmente, embora se enfatize o uso civil da base, há uma inconsistência em relação à proibição do uso militar. Há a possibilidade de que o emprego militar da base seja obtido — com vantagem exclusiva para os EUA — de outra forma: com o lançamento de satélites de vigilância e espionagem, que incorporam a mesma tecnologia de satélites de uso civil.

A posição do PCdoB ao aprovar o acordo

A traição de partidos estalinistas à revolução socialista mundial já faz parte da história. Mas apoiar um acordo com uma potência estrangeira que agride a soberania nacional de um país oprimido é raro. Foi isso que o PCdoB fez: transformou uma iniciativa antinacional do bolsonarismo em algo a ser apoiado pelos “comunistas”. Um ultraje!

O PCdoB justificou seu voto favorável ao Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) com uma série de argumentos falsos, tentando mascarar o papel nefasto de um partido que se diz comunista em legitimar a traição nacional que o acordo representa.

Segundo o PCdoB, a soberania nacional teria sido preservada e o acordo não criaria um enclave estrangeiro em território brasileiro, nem feriria a autonomia nacional, pois trataria “apenas da proteção de tecnologias envolvidas nos lançamentos comerciais”. Ou seja, aceitou o argumento cínico do imperialismo, que sabia que não era esse o caso.

Outra mentira: alega que o acordo não bloqueia o Programa Espacial Brasileiro (PEB). Em função do acordo, o Brasil tem que lançar os satélites que produz na Guiana ou na Índia — um absurdo total. Mas o máximo da desfaçatez foi o argumento de que o acordo tem potencial “para impulsionar o uso comercial da base, atrair investimentos e fomentar um polo tecnológico no Maranhão”. Tenta jogar os interesses locais do Maranhão contra o interesse nacional brasileiro, mas mesmo isso é falso, pois não houve nenhum desenvolvimento na região onde a base está instalada.

Yankees, go home!

A frase que sustentou uma luta internacional contra o massacre da população vietnamita pelo imperialismo norte-americano hoje é ironizada e considerada “coisa do passado”. Por acaso os EUA se tornaram um país pacífico e voltado para beneficiar a humanidade? Nada disso. É um país cuja população votou em massa em um projeto de destruição de todos os países que não se submeterem à loucura trumpista. O que os EUA declararam, como nunca antes na sua história, é uma guerra mundial contra todas as populações da Terra, inclusive contra países imperialistas até ontem seus aliados históricos. Não é à toa que quase todos os países querem se livrar da moeda norte-americana, que se tornou uma arma mortal do imperialismo. Todos querem que os norte-americanos sumam do planeta!

No momento em que os bolsonaristas e a extrema-direita em geral se mostram claramente vendidos ao governo norte-americano e capazes de estimular sanções de um governo estrangeiro sobre o Brasil, é importante que o governo brasileiro, soberanamente, expulse os norte-americanos da Base de Alcântara e assuma seu controle integral. Não é possível continuar compactuando com a literal invasão do Brasil pelos EUA, permitindo que uma parte de nosso território só possa ser acessada por estrangeiros — o que é expressamente proibido pela Constituição Nacional.

Para que possamos chegar a esse objetivo, é preciso que haja uma grande mobilização nacional pela retomada da Base de Alcântara — principalmente a mobilização da classe trabalhadora, que, na verdade, não tem a mínima noção do que está ocorrendo. É preciso divulgar amplamente o efeito tóxico que tem este “acordo” de lesa-pátria. Ele foi assinado, com apoio do então governador do Maranhão, Flávio Dino, e de todos os comunistas do PCdoB, pelo mais criminoso presidente que o Brasil já teve: Jair Bolsonaro.

* A opinião dos colunistas não expressa, necessariamente, a deste Diário

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