Wolfgang Becker lançou Adeus, Lênin! em 2003 e logo conquistou crítica e público. A premissa é engenhosa: uma mãe socialista convicta entra em coma pouco antes da queda do Muro de Berlim. Quando acorda, meses depois, seu filho teme que a notícia da reunificação seja forte demais para seu coração frágil. A solução? Recriar dentro do apartamento a Alemanha Oriental que já não existe.
Essa farsa doméstica rende algumas das cenas mais engraçadas do cinema europeu recente. O filho e seus amigos gravam telejornais falsos, reciclam potes de conserva com rótulos antigos e inventam justificativas para a presença de produtos capitalistas no armário. É humor de situação, mas também humor político: a mentira piedosa de um filho faz mais para manter viva a aparência do regime do que toda a propaganda estatal da época. O riso surge não da superioridade ocidental, mas da criatividade cotidiana para preservar o mundo de uma mãe que acreditava sinceramente naquele sistema.
O socialismo do simples — e seus limites

O filme mostra que a Alemanha Oriental não era só repressão ou privação. Havia ali uma prosperidade do simples: todos tinham acesso a trabalho, saúde, educação e até a bens de consumo básicos. O carro Trabant, por exemplo, se tornou símbolo dessa igualdade. Não era luxuoso, mas estava ao alcance da maioria — um “Fusca do Leste”, charmoso em sua simplicidade. Essa sensação de inclusão universal dava dignidade à vida cotidiana.
Porém, a burocracia que sustentava essa igualdade acabou se tornando armadilha. Para evitar disparidades, o sistema engessava a inovação. Produtos demoravam a se modernizar, fábricas continuavam a operar com defasagens, e qualquer tentativa de repensar políticas era sufocada por decretos rígidos. Assim, mesmo não sendo um regime de violência sistemática como as ditaduras latino-americanas, a RDA perdeu espaço por incapacidade de se reformar.
O filme sugere que a comparação com o Ocidente — vitrines brilhantes, carros de luxo, propagandas coloridas — foi importante, mas não decisiva. O colapso veio mais da estagnação burocrática do que da tentação consumista. A mãe, símbolo dessa fidelidade, aceitava todas as disposições do regime como naturais. Sua fé cega na autoridade estatal traduzia o que foi o grande fracasso: a impossibilidade de autocrítica, de admitir erros e redesenhar projetos.
Humor e melancolia versus vigilância e medo

Nesse sentido, Adeus, Lênin! é um filme leve sobre um tema pesado. Ele escolhe a via da comédia afetiva para falar de um regime que ruiu mais por falta de elasticidade do que por excesso de violência. As cenas em que o filho inventa notícias para justificar a chegada de produtos ocidentais ou cria narrativas fantasiosas de líderes socialistas acolhendo refugiados alemães orientais são engraçadas, mas também profundamente melancólicas. Elas lembram ao espectador que, para muitos, a queda da RDA foi tanto libertação quanto perda de identidade.
O contraste com A Vida dos Outros (2006) ajuda a entender essa diferença de tom. Enquanto Becker enfatiza o absurdo e a ternura, Florian Henckel von Donnersmarck mergulha na repressão. A Vida dos Outros mostra a sombra da Stasi, os artistas vigiados, o medo constante da denúncia. É a face mais dura da RDA, a que lembrava que nem todo mundo podia rir. Juntos, os dois filmes constroem um retrato ambíguo: um país onde se podia viver com dignidade no simples, mas onde a vigilância e a falta de liberdade corroíam silenciosamente qualquer possibilidade de futuro.
Vale a pena ver Adeus, Lênin!?

Sim. Duas décadas depois, o filme mantém frescor e relevância. Ele não romantiza a RDA, mas lembra que os regimes não se medem apenas por vitórias econômicas ou derrotas militares. Medem-se também pela vida cotidiana de seus cidadãos, pelas crenças que carregam e pelas mentiras que contam a si mesmos para sobreviver.
O humor do filho enganando a mãe é também crítica: enquanto a burocracia real sufocava reformas, a imaginação pessoal criava soluções improvisadas. Adeus, Lênin! nos lembra que a história não é feita apenas por líderes e decretos, mas também por pequenos gestos, por narrativas domésticas e pelas formas inventivas de lidar com a mudança. É um filme que diverte, emociona e, ao mesmo tempo, aponta para a pergunta central: como regimes que ofereciam igualdade material puderam ruir tão rápido? A resposta está no riso melancólico que atravessa cada cena.




