Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

Monsieur Verdoux, de Chaplin, razão capitalista e luta de classes

É a racionalidade capitalista que é instrumentalizada em nome do lucro e dos privilégios dos ricos, que usam dos meios mais violentos, como o genocídio, para mantê-los.

Monsieur Verdoux, dirigido por Charlie Chaplin, foi lançado em 1947, pouco depois do fim da II Guerra Mundial. É um filme muito atual e surpreendente, no qual a comédia, que normalmente associamos ao diretor, dá lugar a uma narrativa irônica, sagaz e melancólica, que reflete o momento histórico de sua produção. Aqui, Chaplin associa a violência como característica essencial do capitalismo. 

Tanto a forma do filme, quanto seu conteúdo são trabalhados de modo a desafiar a audiência e sua expectativa de um entretenimento fácil. O público é convidado a refletir sobre a situação apresentada com certa distância, ou seja, não há espaço para ele se identificar com os personagens e mergulhar na história sem o mínimo de senso crítico.

A ideia original foi do cineasta Orson Welles, creditado no filme, e que na época já tinha uma carreira consolidada de diretor de cinema e de teatro, principalmente na cena de vanguarda nova-iorquina. Por isso, é possível perceber também que há algo de brechtiano no filme. A figura de Chaplin como o personagem título causa o maior estranhamento.

A primeira cena mostra uma lápide que nos informa que Henri Verdoux (Chaplin) está ali enterrado. Sua voz em off anuncia o que vamos assistir. Para os brasileiros, é uma maneira muito machadiana de abrir uma narração em primeira pessoa, pois lembra o recurso do autor-morto de Memórias Póstumas de Brás Cubas. O personagem anuncia:  

“O que se segue é história. Foi um empreendimento estritamente comercial para sustentar um lar e uma família. Deixe-me assegurar: a carreira de um Barba Azul está longe de ser lucrativa”.

Com uma imagem e uma linha de diálogo, Chaplin resume o enredo para nós e estabelece que o ponto de vista é de seu personagem principal, apesar de que há também um outro  narrador no filme, que os teóricos chamam de oculto ou implícito, presente em muitos momentos para contrapor a sua visão de mundo. Esta questão formal do ponto de vista – muito utilizada nos romances – é importante porque é usada para revelar conflitos de interesses e meias-verdades. 

Machado de Assis foi o escritor que mais soube usar a narração em primeira pessoa como uma técnica que quebra com as formas mais canônicas do romance. Tais recursos também são políticos, ou seja, visam romper com os truques que as classes abastadas usam para ditar os rumos da cultura. Se em Dom Casmurro, o protagonista Bento Santiago conta sua história no alto de sua posição de classe dominante no Brasil escravagista, então, a lição é buscar por suas contradições e não se identificar com sua narrativa. Isso nos ensina nosso maior crítico materialista, Roberto Schwarz.

Podemos dizer que esse é o interesse de Chaplin e Welles com Monsieur Verdoux e aí está o segredo do filme. Na abertura, Chaplin estabelece o narrador e também sua classe social. Trata-se de um pequeno-burguês que abre uma firma, ou seja, torna-se um empreendedor de um negócio parecido com a história de “Barba Azul”, personagem de um conto infantil de Charles Perrault, que ficou conhecido por ter assassinado suas seis esposas. Em poucas palavras, ficamos sabendo que um assassino vai contar sua história para nós.

Verdoux nos conta sua trajetória de bancário, casado com uma mulher paralítica e com um filho pequeno, que se vê desempregado na crise de 1929, após 30 anos de dedicação. Para sobreviver e arcar com suas responsabilidades de provedor, ele monta seu negócio de golpes. O modelo é simples: ele seduz mulheres de meia-idade solitárias com alguma propriedade, casa-se com elas, assassina-as e fica com o dinheiro. 

Verdoux explora pessoas mais frágeis do que ele em busca de lucro pessoal. Sua figura de narrador faz a vida de quem assiste bem difícil: o filho pequeno e a esposa doente impedem que seja visto apenas como um vilão. Ele tem um álibi para seus atos grotescos. Ao mesmo tempo, suas vítimas são mulheres difíceis, ignorantes, deslumbradas, não conseguindo de nós qualquer empatia. Por fim, no corpo de Chaplin que, por décadas, foi o icônico Vagabundo, fica quase impossível associá-lo à vilania.

A chave para seu entendimento está na outra frase da introdução: “foi um empreendimento estritamente comercial”. Aqui, ficamos sabendo que a lógica do personagem é capitalista. É por meio da razão capitalista que ele encontra a solução moral para o seu negócio. O interesse comercial, a necessidade de sobrevivência, impede a fácil caracterização de psicopata, como nos ensina a escola cinematográfica americana e sua corrente secular de “serial killers”. Nosso assassino é racional, ou seja, não é movido por desejos incontroláveis e inconfessos.

Henri Verdoux justifica sua lógica econômica comparando-a com a carnificina das guerras e crises que o sistema econômico produz: “Quanto a ser um assassino em massa… sou apenas um amador em comparação”. Essa frase inclui mais um elemento no conflito: a conjuntura social e histórica. Na verdade, de maneira cínica, ele está se comparando à classe dominante capitalista, responsável por duas guerras mundiais. Como pequeno-burguês e com fé inabalável no sistema que nunca questionou, ele tenta empreender em um negócio que, em sua condição de classe, está fadado ao fracasso.

Uma interpretação à luz da Escola de Frankfurt

Nesse ponto, uma das possíveis leituras que podemos fazer do filme se baseia nos achados da Escola de Frankfurt. Os teóricos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer publicaram, em 1944, um livro intitulado Dialética do Esclarecimento, onde argumentam que a razão moderna, que nasce como libertadora no século XVIII, se tornou uma razão instrumentalizada. Na época, estavam exilados nos Estados Unidos. Para eles, a mesma racionalidade que emancipou a humanidade na Revolução Francesa desembocou em Auschwitz. 

Dessa forma, podemos entender a lógica de Verdoux como um exemplo dessa razão instrumental: ele calcula crimes como um administrador e realiza um trabalho dentro da lógica de produtividade do sistema econômico. Como conclusão dessa racionalidade distorcida, podemos concluir que toda a humanidade falhou e o mundo não presta. 

O problema da crítica de Adorno e Horkheimer é que ela é totalizadora, ou seja, a humanidade é o problema e, portanto, está fadada à sua autodestruição. As limitações de A Dialética do Esclarecimento têm sido apontadas por autores e marxistas, como é o caso aqui do PCO.  Segundo Perry Anderson, no ensaio Considerações sobre o Marxismo Ocidental, a origem está na separação, durante o desenvolvimento do materialismo histórico após a I Guerra Mundial, do trabalho intelectual da prática política nos partidos comunistas e socialistas do continente europeu.

Essa separação é ainda a realidade que vivemos. No caso específico da Escola de Frankfurt, ele aponta para um fato disruptivo e que ainda impacta a evolução do marxismo e as lutas sociais nos dias de hoje: a Escola ajudou a criar as disciplinas acadêmicas de ciência sociais, ao mesmo tempo que desvinculou o pensamento teórico de seu objetivo principal que era o de oferecer aos movimentos operários reflexões concretas sobre a luta de classes, separando o trabalhador intelectual (a pequena-burguesia universitária) do trabalhador comum.

Ele cita um fato interessante: em 1932, Horkheimer se tornou presidente da Escola de Frankfurt. “Já em seu discurso de posse”, diz Anderson em seu livro, “deu o tom para uma grande reorientação no trabalho do instituto, afastando-se da preocupação com o materialismo histórico como “ciência”, rumo ao desenvolvimento de uma “filosofia social” complementada por investigações empíricas. Em 1932, o instituto parou de publicar o Arquivo para a História do Socialismo e do Movimento dos Trabalhadores, sua nova revista foi inocentemente intitulada Revista de Pesquisa Social”.

Não é preciso dizer o quanto essa simples decisão impactou toda a formação teórica que viria se tornar a universidade atual. O problema de Adorno e Horkheimer está no simples fato de que se o materialismo histórico é colocado de lado como ciência, então, a luta de classes também é. Daí a facilidade da conclusão totalizadora de sua filosofia. 

Uma interpretação à luz da luta de classes

Outra maneira de analisar o filme de Chaplin é colocar a questão da luta de classes no centro da interpretação do enredo e escapar da visão de mundo do narrador Henri Verdoux. O personagem não é o Vagabundo que, mesmo à margem do sistema capitalista, encontra momentos de solidariedade, de luta e de esperança em filmes como Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936). 

Verdoux é um pequeno-burguês, um homem comum, da classe média. Sua saída não é questionar o sistema em que vive, mas imitar a classe dominante. Se os ricos ganham dinheiro matando pessoas, por que ele não pode? É um empreendimento como qualquer outro. A saída individual, empreendedora, prova-se errada. Enquanto isso, a classe dominante continua enriquecendo com essa lógica, como é descrito na cena final.

Verdoux é o retrato de um indivíduo que expõe a lógica do sistema pelo que ela é: um absurdo. Sua escolha individual – do herói que tudo resolve – também é típica do cinema mais conservador. Ao final, desiludido, ele se deixa prender e condenar. Como o filme se passa na França, sua pena é, ironicamente, a guilhotina que aqui não é mais símbolo da Revolução, mas de como o Estado burguês, as leis burguesas e a justiça burguesa funcionam para aqueles que não têm o poder de matar milhões.

Nesse contexto, a conclusão é que irracional e psicopata é a lógica capitalista imposta pela classe dominante. Isso é muito diferente de dizer que o iluminismo é o problema. É a racionalidade capitalisa que é instrumentalizada em nome do lucro e dos privilégios dos ricos, que usam dos meios mais violentos, como o genocídio, para mantê-los. Isto é o que os teóricos de Frankfurt deveriam ter deixado claro.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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