Ricardo Rabelo

Ricardo Rabelo é economista e militante pelo socialismo. Graduado em Ciência Econômicas pela UFMG (1975), também possui especialização em Informática na Educação pela PUC – MINAS (1996). Além disso, possui mestrado em sociologia pela FAFICH UFMG (1983) e doutorado em Comunicação pela UFRJ (2002). Entre 1986 e 2019, foi professor titular de Economia da PUC – MINAS. Foi membro de Corpo Editorial da Revista Economia & Gestão PUC – MINAS.

Coluna

Reprivatização da Eletrobrás pelo governo Lula: gota d’água?

"É um acordo anti-Lula promovido pelo próprio governo Lula"

Surpreendendo a todos que acreditavam que o governo Lula queria realmente reestatizar a Eletrobrás, caiu como uma bomba a notícia de que havia um acordo em andamento. A Advocacia-Geral da União (AGU) e a Eletrobrás fecharam um acordo sobre questões de gestão e a participação da União na empresa, após quase dois anos de discussão.

A ação contra a Eletrobrás do governo Lula

Em dezembro de 2023, o governo entrou com uma ação no STF exigindo que sua participação no Conselho de Administração da empresa correspondesse aos 43% das ações que possui. Com essa ação, o governo já havia renunciado a questionar o absurdo processo de privatização da Eletrobrás e mesmo a exigir os 65% das ações, que foram reduzidos a apenas 43% pela privatização.

O acordo apenas resultará em uma pequena ampliação de vagas da União no Conselho de Administração da empresa e nada mais. Se for aprovado pelo STF, a União terá três vagas no Conselho de Administração da Eletrobrás, que contará com dez integrantes, além de uma vaga no Conselho Fiscal da companhia, constituído por cinco membros.

Como se não bastasse o governo trocar um virtual controle do Conselho de Administração por uma participação minoritária, o acordo dispensa a Eletrobrás de continuar responsável pela revitalização da usina Angra I e pelo término da construção de Angra II e III, que passarão a ser de responsabilidade da União. Segundo a Eletrobrás, as garantias de R$ 6,1 bilhões atualmente prestadas pela companhia nos financiamentos concedidos pelo BNDES e pela Caixa ao projeto de Angra 3 permanecem inalteradas. Já o acordo de investimentos que a empresa assinou com a ENBPar (Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional), em abril de 2022, perderá os efeitos no momento da assinatura do termo de conciliação.

A reação contra o acordo

A contestação aos termos do acordo veio do movimento sindical, interno à empresa ou fora dela. De acordo com a Associação dos Empregados da Eletrobrás (AEEL), em nota divulgada em 5 de março, “o Brasil terá sofrido mais um terrível golpe em sua soberania, se confirmado o acordo”. Segundo a nota, será “a segunda traição nacional em torno da questão da Eletrobrás. A primeira foi a do golpista Bolsonaro, que na campanha afirmou que jamais privatizaria a Eletrobrás. A segunda – caso se concretize esse acordo indigno – terá sido obra do presidente Lula, que prometeu durante a campanha devolver a Eletrobrás como patrimônio do povo e que chegou a chamar a privatização da empresa de ‘crime de lesa-pátria’ e de ‘escárnio’, mas que, ao que tudo indica, pretende convalidar esse crime e ainda por cima gerar um prejuízo bilionário para os cofres públicos.”

A entidade sindical dos trabalhadores da Eletrobrás termina a nota afirmando que “a categoria dos eletricitários, que lutou e luta sem um segundo de trégua em defesa de uma Eletrobrás pública e da soberania energética nacional, que enfrentou os golpistas Temer e Bolsonaro, que sofreu e ainda sofre as mais duras perseguições, jamais, em hipótese alguma, compactuará com mais uma traição nacional, ainda mais vinda de um governo que ajudou, com todo entusiasmo, a eleger.”

Ikaro Chaves, engenheiro eletricista e ex-funcionário do sistema Eletrobrás, criticou a postura do governo no acordo. “Nada justifica que o governo abra mão do interesse do Estado [sobre seu poder de voto] sem justificativa. Porque o interesse não é do governo, é do Estado brasileiro”, reclamou. “Não se pode conciliar com a Constituição. A Constituição precisa ser cumprida.” “Os três cargos que o governo terá no Conselho de Administração não têm influência nenhuma numa sociedade anônima, como é a Eletrobrás”, afirmou o engenheiro.

Ikaro Chaves integrou movimentos populares contra a privatização da Eletrobrás. Depois, fez parte do governo de transição montado por Lula. Viu na ação no STF, pelo governo Lula, uma alternativa para rediscutir a venda da Eletrobrás.

O acordo de Lula contra Lula

Fundada em 1962, a Eletrobrás é a maior companhia de energia elétrica da América Latina. A empresa oferta 22% de toda a energia gerada no Brasil, possuindo uma capacidade instalada de 44.600 megawatts. Administra mais de 100 usinas (entre hidrelétricas, termelétricas, eólicas e solares) e controla 37% da rede de transmissão nacional (73.800 quilômetros de linhas). Todo esse patrimônio resultou de uma tentativa de criação da Eletrobrás por Getúlio Vargas, mas que só foi concretizada no governo João Goulart. Se há um exemplo de sucesso das empresas estatais no Brasil, a Eletrobrás ocupa o topo do ranking. A empresa é superavitária — a Eletrobrás registrou lucro de R$ 5,7 bilhões em 2021 e R$ 3,6 bilhões em 2022.

A empresa já esteve a ponto de ser privatizada pelo governo FHC, que a incluiu no Programa Nacional de Desestatização e obrigou sua transformação em S.A., com o capital aberto por distribuição de suas ações ao mercado. Em 2004, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.848/04, retirando a Eletrobrás do Programa Nacional de Desestatização. Lula também logrou reverter parte do processo de desmonte iniciado na gestão anterior, ampliando a atuação da Eletrobrás por meio da Lei 11.651, que conferia à empresa mais autonomia, lhe devolvia a função de coordenadora do sistema elétrico e autorizava sua atuação no exterior.

Após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016, a Eletrobrás foi novamente submetida ao processo de desmonte e tentativas de privatização. Em 2018, Michel Temer sancionou projeto de lei forçando a Eletrobrás a encerrar suas atividades no setor de distribuição e anunciou que submeteria o projeto de privatização da empresa ao Congresso. Nesse mesmo ano, a Agência Sportlight revelou que, por determinação do governo Temer, gestores da Eletrobrás pagaram 1,8 milhão de reais para que empresas terceirizadas publicassem críticas à Eletrobrás, visando mobilizar a opinião pública em favor da privatização da empresa.

A investida derradeira veio em abril de 2021, quando o governo Bolsonaro baixou um decreto reinserindo a Eletrobrás no Plano Nacional de Desestatização. No mês seguinte, a Câmara dos Deputados aprovou uma Medida Provisória encaminhada pelo governo federal tratando da privatização da companhia. O texto previa que a empresa fosse entregue ao controle privado por meio da venda de ações ordinárias na Bolsa de Valores. O projeto foi aprovado no Senado em junho de 2021.

Durante os governos Lula, a empresa foi fortalecida e não se falava em privatização. Em sua campanha eleitoral, Lula sempre reafirmava a proposta de reestatizar a empresa e chamava a privatização de um crime de lesa-pátria. A grande mudança veio com a ação no STF, em que não se questionava a privatização em si, mas apenas um aspecto da mesma relativo ao não cumprimento da proporção entre o percentual de ações detidas pelo governo e o número de cadeiras no Conselho de Direção da empresa. De qualquer forma, era uma estratégia de questionamento da privatização e propiciava a manutenção de um discurso nesse sentido.

A iniciativa de fazer um acordo nas bases em que foi feito não foi precedida de nenhum debate sobre o tema no governo ou no partido do presidente, o PT. Considerando todos os ângulos pelos quais se analisa o acordo, ele se mostra claramente como uma mudança radical da estratégia adotada pelos vários governos do PT, tanto de Lula quanto de Dilma Rousseff. É um acordo feito pelo atual governo sem que tenha havido qualquer continuidade com os governos anteriores e sem que seja uma alternativa frente a algum impasse ou imposição do Congresso. Dessa forma, é um acordo anti-Lula promovido pelo próprio governo Lula. Trata-se de uma traição em relação às propostas feitas na campanha eleitoral e que provavelmente motivaram a vitória de Lula. E, pelo alcance das mudanças que provocará nas ações da empresa, tornando-as legítimas e normais, é literalmente um acordo tipicamente neoliberal e que poderá ser um dos motivos para dificultar ainda mais a reeleição de Lula em 2026.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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