Hélio Rocha

Possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é repórter de meio ambiente e direitos sociais em Plurale em Revista e correspondente em Pequim.

Coluna

Lumumba, o jazz e o uso dos negros por seus carrascos

Lumumba, primeiro-ministro do Congo e principal líder do movimento, dava o nome da projetada nação pan-africana de Estados Unidos da África

O uso da cultura como ferramenta diplomática e da política internacional, sobretudo pelos países imperialistas, é sempre difuso, mas consensualmente aceito. Tanto que, na China, a entrada dos grupos de k-pop e da cultura pop coreana e japonesa em geral é regulada, bem como a maior parte da produção cultural do ocidente. O cinema americano é outro exemplo claro, quando se discute filmes como “Sniper Americano” (2015), de Clint Eastwood, peça de legitimação da atuação controversa dos Estados Unidos no oriente médio.

Em “Trilha sonora para um golpe de Estado” (2024), documentário em 150 minutos filmado pelo diretor Johan Grimonprez, discute-se um curioso e ainda escondido momento do uso da cultura para a concretização de interesses imperialistas americanos: o uso do jazz, música negra, para aproximação entre os Estados Unidos e as recém-independentes nações africanas. Uma aproximação que não haveria de ser fraterna e pacífica, ainda que se utilizando de expoentes negros para dialogar com o continente de seus ancestrais. Na verdade, ela resultou em divisões internas e golpes de Estado, como está no título do filme.

O auge do jazz e a independência da África

Thelonious Monk, Duke Ellington, Dizzy Gillespie, Miles Davis e, principalmente, Louis Armstrong, moviam com as emoções dos negros norte-americanos e suscitavam admiração dos homens brancos, controladores da indústria fonográfica e, um passo acima, da indústria bélica e da inteligência norte-americana. Não era difícil que, com a criação de estruturas apropriadas para a população africana, além do controle das mesmas pelos nativos após a expulsão dos europeus, os africanos criassem seu vínculo com o jazz, principal expoente da cultura negra no mundo. E, sendo assim, demandassem a presença de seus ídolos em suas terras.

Entretanto, a independência africana não trazia só a cultura ocidental para as casas das famílias nativas. Também permitia aos governos eleitos ou aclamados pelos povos de Congo, Nigéria, República Centro-Africana, Guiné-Bissau, entre outros, unirem-se a asiáticos como Índia e Indonésia para celebrar a Conferência de Bandung, que estabelecia que os povos recém-independentes não se alinhassem com as potências da Europa, garantindo sua soberania política e econômica num alinhamento próprio que os tornassem fortes em defesa de seus interesses.

Daí surgiu o pan-africanisno, ideal africano que pretendia criar um Estado Unificado na região subsaariana, ocupando um território equivalente aos de Brasil, China, Estados Unidos, Canadá ou mesmo Rússia, com saída para os dois oceanos – Atlântico e Índico – e acesso a diferentes riquezas que, antes, estavam divididas entre colônias francesas e inglesas e, depois, entre países pequenos e politicamente débeis.

Lumumba, o continente e sua causa maior

Lumumba, primeiro-ministro do Congo e principal líder do movimento, dava o nome da projetada nação de Estados Unidos da África, de institucionalidade, como fica claro, inspirada na dos Estados Unidos da América. A capital seria Léopoldville, atual Kinshasa, que é a sede do Estado congolês. E seu carisma para além das fronteiras de seu país, sendo reverenciado como um Mandela de seu tempo, permitiria unificar diferentes povos sob a liderança de um líder aclamado, mas de institucionalidade democrática.

Evidente que os países imperialistas, e mesmo a União Soviética, incomodaram-se com isso, mas a criação de um Estado forte africano era sensivelmente ameaçadora para os Estados Unidos, já que uma mineradora importante no sudeste do Congo, a Union Minière, tinha o controle de uma fonte de Urânio-235, um componente de fissura nuclear mais poderoso que os das bombas de Hiroshima e Nagazaki. Em plena Guerra Fria, controlar o Urânio-235 era questão de sobrevivência, e a criação dos Estados Unidos da África poderia fortalecer a União Soviética, que apadrinhara vários daqueles países durante o internacionalismo stalinista.

O filme conta esta história, sempre alternando com os momentos em que o jazz americano excursionava ou dava declarações sobre a sua experiência na África. A cadência do documentário é dada pelas músicas dos artistas negros americanos, e as cenas vão transcorrendo, música após música, suavemente transferindo-se para outra, enquanto os líderes e personagens envolvidas vão dando declarações gravadas à época, que se juntam num mosaico de falas perfeitamente encaixadas, como se fossem um roteiro de ficção.

A junção de fala com música, com transições suaves e mudanças de ritmo conforme a narrativa, é diferente de simplesmente uma trilha sonora, assemelhando-se mais a uma playlist de jazz contemporâneo, com as falas surgindo como o fator novo da música. É um documentário contado em forma de Spotify.

É, portanto, um documentário em que Lumumba é o protagonista, antagonizado pelas carismáticas e queridas figuras do jazz, que estão lá – nós, espectadores, sabemos – como cúmplices inconscientes da maldade, que será perpetrada por corporações e governos contra o mesmo povo negro de que os músicos fazem parte.

Uma dança macabra que se assiste com a cadência dos baixos e baterias swingadas do jazz de Nova Orleans ou a pauta erudita do jazz novaiorquino, a graça e a leveza dos metais de Gillespie, Davis, a destreza delicada do piano de Monk, a potência luxuosa da voz de Armstrong. Com todos esses elementos, o espectador abstrai as desgraças que estão sendo cometidas nos bastidores, e pode até balançar o pé ao ritmo da banda de Gillespie numa apresentação em Lagos, Nigéria, cumprindo a tour africana.

Armstrong é feito títere do pior golpe da África


O que não sabiam os africanos, tampouco os jazzistas, é que a presença de artistas tão renomados em países miseráveis, com cachês e estrutura pagos pelo Governo dos Estados Unidos, embutiam um cavalo de Troia: a inteligência americana, a pretexto de fazer a segurança dos músicos, infiltrava-se nos países e começava a articular golpes de Estado com grupos rebeldes à autoridade de Lumumba e outros líderes, como o cabo-verdiano/guineense, marxista e autor da independência de Guiné-Bissau, Amílcar de Castro

Numa África ainda dividida em muitos povos com diferentes interesses, compreendidos numa mesma nação, desenhou-se assim, com traços contemporâneos, o perverso uso do negro contra o negro, que viabilizou o tráfico negreiro e a escravidão três séculos atrás.

Enquanto os jazzistas cumpriam com suas agendas de confraternização com os povos irmãos, muitos dos quais críticos ao Governo americano, o trem passava. Gillespie chegou a lançar uma irreverente candidatura à presidência dos Estados Unidos, a fim de protestar contra a forma como o Governo tratava a cultura. Ou seja, estavam alheios ao mal que faziam na África, embora fossem racialmente conscientes nos Estados Unidos, que caminhavam para os movimentos pelos direitos civis.

Louis Armstrong, por fim, teve o papel essencial no episódio que pôs fim ao sonho do pan-africanismo. Numa tour no Congo, fez dois concertos, um na província da Katanga, onde estavam a mineradora e o Urânio. Outro em Léopoldville, onde estava a sede do Governo e, claro, onde ficava Lumumba. Com informações recolhidas, os agentes estadunidenses puderam municiar com armamentos e inteligência o grupo de Mobutu Sese Seko, general dissidente de Lumumba, permitindo que ele fosse sequestrado e morto poucos meses depois.

Um concerto, uma alegria, uma desgraça

“Trilha sonora para um golpe de Estado” é um filme informativo, educador, consternante, mas, ao mesmo tempo, lúdico e divertido. Se é possível criar essa combinação, Grimonprez conseguiu, porque o espectador assiste ao progresso da história esperando a próxima deliciosa música dos gênios do jazz, abstraindo o fato de que elas estão ali porque, naquele período, foram instrumentalizadas para recolonizar a África por meio de suas sanguinárias ditaduras.

Ao fim e ao cabo, porém, era essa a impressão a ser passada: como a arte, na sua melhor essência, consegue dissuadir os não envolvidos na gravidade do problema, seduzindo-o a apenas balançar o corpo e sentir a música, quando à sua frente está passando a trama de um assassinato seguido da fome, de vários genocídios e da AIDS.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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