O Menu (The Menu, 2022) é um filme norte-americano dirigido por Mark Mylod, cineasta britânico conhecido por seu trabalho na série Game of Thrones. O elenco é liderado pelo também britânico Ralph Fiennes, no papel do Chef Julian Slowik, um artista da cozinha desiludido com a sua profissão e que toma decisões drásticas para dar um fim à sua decepção. A atriz americana Anya Taylor-Joy interpreta Margot, uma prostituta que acaba participando da história por acaso. O britânico Nicholas Hoult vive o rico e medíocre Tyler, um entusiasta da gastronomia que vê Slowik como um gênio inatingível.
A trama acompanha um seleto grupo de convidados que paga uma fortuna para vivenciar uma experiência gastronômica no Hawthorne, um restaurante exclusivo localizado em uma ilha remota. Os convidados incluem milionários do setor financeiro, críticos gastronômicos e celebridades decadentes, que se veem diante de um jantar meticulosamente organizado pelo Chef Slowik. Cada prato servido ao longo de exatas quatro horas traz não apenas ingredientes considerados sofisticados, mas também experiências de humilhação e desconforto.
O Menu tem, entre suas inúmeras referências, filmes como A Comilança (La Grande Bouffe, 1973), dirigido por Marco Ferreri, e O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, 1972), de Luis Buñuel. A Comilança conta com um elenco europeu de peso, incluindo Marcello Mastroianni, Michel Piccoli, Philippe Noiret e Ugo Tognazzi, e retrata quatro homens de classe média que se isolam em uma mansão para uma orgia de comida e sexo, decidindo deliberadamente comer até a morte.
Já O Discreto Charme da Burguesia, estrelado por Fernando Rey, Paul Frankeur, Delphine Seyrig e Stéphane Audran, acompanha um grupo de aristocratas que tenta realizar um jantar, mas se vê repetidamente frustrado por situações inexplicáveis, típicas do cinema surrealista de Buñuel. A estrutura do filme enfatiza a futilidade da elite e sua alienação da realidade social.
O Menu flerta com esses conceitos, mas sem a contundência de seus predecessores. Podemos dizer que Mark Mylod conduz sua obra com elementos surrealistas, principalmente como constrói a absurda experiência gastronômica oferecida por Slowik aos seus clientes e, por tabela, à audiência que assiste ao filme. À medida que a experiência se torna cada vez mais sinistra, os clientes percebem que estão presos em um espetáculo de horror planejado com um único fim: a morte de todos (desculpe o spoiler!). Margot, que não deveria estar entre os convidados, é a única a questionar as regras desse jogo.
O primeiro grande problema de O Menu é sua adesão à estrutura narrativa hollywoodiana, que limita o alcance de sua crítica social. A construção do roteiro obriga a trama a girar em torno do protagonista Chef Slowik e seu embate com a esperta Margot, formando uma oposição entre um anti-heroi carismático e uma antagonista deslocada.
Ralph Fiennes, veterano e respeitado entre seus colegas de elenco, domina a narrativa com sua presença, transformando o filme em um monólogo de seu personagem em crise com sua profissão e com a sociedade em que vive. Slowik monopoliza as ideias filosóficas da história, enquanto os demais personagens são reduzidos a meros espectadores. O chef é um artista martirizado e ressentido com a sociedade, que tirou dele toda a alegria de viver e o transformou em um produto a ser desfrutado como uma experiência descartável, recheada de ideias abstratas e autopromocionais.
Margot, por outro lado, não é uma personagem orgânica dentro desse universo, mas uma peça que serve para estruturar a oposição entre “autenticidade” e “decadência”. Sua presença é funcional: ela existe para ser um contraponto a Slowik, pois é a única que enxerga a comida como ela deve ser: algo para matar a fome. A contradição central do filme é que sua crítica à experiência elitista e individual (exclusiva) da alta gastronomia recai sobre Slowik e seus clientes, sem jamais alcançar aqueles que realmente sustentam esse sistema.
Os clientes do restaurante representam tipos sociais importantes no consumo da arte sob o capitalismo neoliberal, mas o diretor os trata de forma superficial. Temos a crítica gastronômica (Janet McTeer), representando a mídia e seu poder de dizer o que é ou não alta cultura; um burguês que não entende de arte, mas que consome como símbolo de status; os investidores, verdadeiros donos do restaurante, retratando o capital financeiro parasita e, por fim, o rico fã obsessivo (Nicholas Hoult), que encapsula o modo de viver daqueles que podem comprar esse tipo de experiência e é responsável por levar Margot como acompanhante.
O problema do filme está na representação da luta de classes que tenta, sem sucesso, oferecer a quem assiste. Por exemplo, os verdadeiros “donos” do restaurante são jovens empreendedores milionários, aparentemente donos de uma fintech que comete fraudes (quem nunca no capitalismo, não é?). Porém, esses rapazes não são os burgueses que nos interessam. O verdadeiro poder da burguesia atual, que estrutura e manipula mercados, tendências e o cinema hollywoodiano como peça de propaganda, está ausente da discussão. Todo o enredo está focado em uma briga entre marionetes e não entre essas e seus reais titeriteiros. Dessa forma, o diretor acaba por protegê-los e faz de seu personagem principal um indivíduo sem capacidade de análise conjuntural adequada.
Outro equívoco de O Menu está na representação da classe operária, limitada à lumpen Margot. Os funcionários do restaurante (cozinheiros, seguranças, supervisores, marinheiros), igualmente explorados, aparecem como servos leais. Eles trabalham como autômatos e seguem comandos de forma ensaiada, reverenciando Slowik, teoricamente seu patrão, até o fim e sacrificando-se sem um lampejo de consciência crítica. Essa unanimidade não existe em nenhum lugar do mundo. A solução narrativa gera uma contradição insolúvel e é, de certa forma, reacionária. Em O Discreto Charme da Burguesia, Buñel tira os trabalhadores de cena antes que o jantar comece com diálogos entre eles, mostrando que fazem parte da realidade concreta e que sabem disso.
Além disso, essa omissão deliberada mostra os limites dos próprios realizadores no trabalho com os materiais que escolheram para realizar sua obra. Pode ter sido algum tipo de censura diante das condições de produção, porém, tudo indica que não. Não é à toa que o Menu foi parar no Disney Channel e teve ótima recepção na mídia hegemônica por sua “crítica social”. Inofensiva, claro. Diferente de A Comilança, onde os protagonistas encenam a falência de um ideal revolucionário, ou de O Discreto Charme da Burguesia, onde a crítica mira diretamente o topo da estrutura de poder, O Menu se perde nessas pretensões.
A singularidade na pós-modernidade e a crítica de Fredric Jameson
O filme tenta se apresentar como uma sátira sobre o consumo elitista da arte e da experiência gastronômica, mas trata-se, na verdade, do que o crítico norte-americano Fredric Jameson chama de pastiche em seus escritos sobre a cultura pós-moderna.
No artigo The Aesthetics of Singularity, publicado na New Left Review em 2015, ele discute as transformações culturais e estéticas sob o neoliberalismo, argumentando, em linhas gerais, que a arte contemporânea se afastou de formas coletivas tradicionais, tornando-se dominada pela lógica da singularidade, em que o valor está no efêmero. Para Jameson, o sujeito associado à autonomia e à criatividade desapareceu à medida que grandes corporações e a financeirização da economia remodelaram a cultura e o consumo em experiências momentâneas e mercadológicas.
Para Jameson, como reflexo dessa lógica, o papel do curador – ou do crítico – se torna central, pois, na ausência de grandes movimentos artísticos estruturados, ele assume a função de organizar e atribuir valor às obras, transformando a arte em um sistema especulativo semelhante ao do mercado financeiro, onde o que importa não é o conteúdo, mas a exclusividade e o status, algo que está no filme.
Para ilustrar essa dinâmica, o teórico menciona, entre outros exemplos, a alta gastronomia e o restaurante El Bulli, de Ferran Adrià, onde pratos eram concebidos como conceitos artísticos e não como comida no sentido tradicional. A experiência gastronômica se torna um evento raro e inacessível, cujo valor reside na singularidade, e não na nutrição (matar a fome) ou na continuidade cultural (o feijão com arroz de todo dia como representação nacional, por exemplo), refletindo a lógica da especulação e da obsolescência que caracteriza o capitalismo neoliberal. No fim, a cultura se transforma em um campo onde a novidade e a exclusividade são as únicas moedas de troca, e a arte se torna um espetáculo a ser consumido rapidamente antes de ser substituído por outra experiência igualmente efêmera.
Podemos dizer que esse é um fenômeno do pós-guerra, que foi evoluindo e já era sentido em filmes como A Comilança e O Discreto Charme da Burguesia, nos anos 1970. Mas é com o neoliberalismo e a globalização nos anos 1980 que esses elementos avançam de tal forma a ponto de permitir que, atualmente, um filme como O Menu exista como uma tentativa de criticar esse estado de coisas. Pode até ser que seus autores conheçam o texto de Jameson, mas isso não foi suficiente para que eles superassem as limitações das condições de produção que os cercavam. Faltou-lhes o vislumbre de que, na luta de classes, o protagonismo é da classe operária.