Há algum tempo, mais especialmente desde a pandemia da Covid-19, ouvimos dizer que pessoas responsáveis “não questionam a ciência”, ou que “se os profissionais de saúde…” – leia-se, aqueles alinhados com determinados pontos de vista ditos científicos – “…orientam procedimento A ou B, é preciso acatar pelo bem de todos”. Há ainda os cientistas que, diante das discordâncias das pessoas, dizem, cinicamente: “se você discorda, que apresente outra pesquisa, revisada por pares, e prove que a sua ideia é a correta.”
O argumento, além de corporativista, faz troça da falta de oportunidade da maior parte das pessoas de acessar o sistema de ensino superior e, mais, de pós-graduação, para ter direito de opinar sobre as próprias disposições que está ordenada a seguir. Isso resultou, nos tempos da Covid-19, em distorções como o mancebo virologista Átila Iamarino falando ao Brasil com a autoridade de um Rasputin em terras brasileiras. “Coronaboy”, tornou-se seu apelido, mais infame que Rasputin, que ao menos está na história, enquanto o primeiro restará como um fenômeno de sucesso pessoal em cima da tragédia que foi a pandemia.
A ciência goza de autoridade religiosa sobre uma sociedade que perdeu a dimensão do eterno e protegeu-se no material. Sendo assim, o que quer que os cientistas digam, se o ovo faz bem ou faz mal, se é necessário comer mais carboidrato ou gordura, se o ano de 2023 foi o mais quente em 60 mil anos ou se 2024 foi o mais quente desde 1967 (façam as contas e entendam), se foi golpe ou impeachment, deve-se seguir, sem questionar as contradições e aparentes interesses que ficam evidentes às mais simples pessoas.
O filme “O Clube de Compras de Dallas”, de 2013, evidencia o problema da burocracia científica. Tão inerte e corporativista quanto quaisquer outras categorias profissionais, sendo suas grandes realizações alcançadas por exceções, não pela regra, não foi capaz de conter o avanço e as mortes pela AIDS em seus primeiros anos. No filme, um infectado do HIV chamado Ronald Woodroof (1950-1992) consegue resultados eficazes para conter os sintomas da síndrome e prolongar a vida de seus portadores, a partir de tratamentos alternativos com medicamentos não aprovados pelas normas da Food And Drug Administration (FDA), equivalente norte-americana à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Isso enquanto cientistas de cátedra aprovavam o remédio AZT, que, administrado sozinho e em doses grandes, prejudicava o paciente em vez de ajudá-lo, ainda que, em tese, fizesse crescer os linfócitos T, que garantem a imunidade destruída pelo vírus da AIDS.
Woodroof (Matthew McConaughey) descobre sua solução com um médico no México, que perdeu sua licença, não sendo explicado o porquê, mas possivelmente por já ter medicado pacientes com seus tratamentos alternativos, que consistiam na melhoria dos hábitos diários (alimentação, higiene, ingestão de drogas, sono) e na ingestão de vitaminas variadas e alguns medicamentos, a maioria deles não aprovados pela FDA. Enquanto isso, o filme não acusa, mas deixa a suspeita de que o AZT tem seu processo de aprovação e difusão acelerado por conta dos interesses da indústria farmacêutica, ao passo que vitaminas e remédios, triviais, não estão na rota do dinheiro que deixa Estados e planos de saúde para as grandes corporações, portanto não interessam.
Nesse contexto, começa uma relação de perseguição e luta por sobrevivência não de Ron contra a AIDS, que ele consegue controlar com seu tratamento alternativo, mas dele contra as autoridades americanas, pesquisadores e médicos, que buscam retirar-lhe o tratamento, a fim de que seja disciplinado ao AZT. Este que, ele sabe empiricamente, ser nocivo aos pacientes com HIV. Disfarçando-se e escondendo-se, ele monta um clube de compras entre portadores da síndrome, a fim de se esconderem do Estado e manter o que lhes garante a vida. O caso foi um dos primeiros experimentos do coquetel para AIDS, hoje um sucesso que permite a soropositivos viver uma vida transtornada, porém com expectativa regular. Ron, a quem foram dados seis meses de vida (o filme exagera e fala em 30 dias), viveu com a síndrome de 1985 a 1992.
Pensando nos dias de hoje, esse problema persiste, mas não pode ser demonstrado, ou se incorre na infâmia do negacionismo. O protecionismo da ciência sobrevive na obscuridade protegida pelas luzes da redoma da autoridade moral, em muitos casos mantida por burocratas do ramo, que são aprovados em mestrados e doutorados por apadrinhamento, já que doutores escolhem os futuros doutores em processos nada impessoais (entrevistas de isenção duvidosa, já que todos se conhecem; projetos que têm autoria identificável pela forma de escrever do candidato e/ou suas ideias defendidas, já que os candidatos são poucos e marcados; candidatos que apresentam suas pesquisas para os professores de quem são, sabidamente, preferência desde as bolsas de estudo na graduação).
Nada diferente do que aconteceu com o Exército, a Justiça, o setor empresarial. Ou todos esses já não foram salvadores da pátria, em algum momento, “porque a disciplina militar não permite corrupção”, “porque o Judiciário é a esperança do fim da impunidade”, ou “o setor empresarial é garantia de gestão eficaz da coisa pública”? Nos últimos dez anos, a ciência se apresenta como um ente salvador tal como o foram esses anteriores, e ainda o são para grupos específicos, os quais, agora, não têm o apoio de uma indústria poderosa como a farmacêutica e a alimentícia. Ron Woodroof, atualmente, seria considerado um administrador de placebos e, com a internet, possivelmente teria sido calado e identificado pelas autoridades como negacionista, morrendo pela AIDS sem o coquetel.