Quando escrevi esse artigo para a Carta Capital, não imaginava que pouco tempo depois aconteceria comigo!
Antes que me cancelem
Publicado em 18 de outubro de 2023
Já fui “cancelada” uma vez. Por mais contraditório que pareça, foi no período em que integrei a Comissão Nacional da Verdade, aprovada no Congresso por empenho da então presidenta Dilma Rousseff. Correu um boato de que eu “não estaria interessada” na causa dos desaparecidos políticos. Um mal-entendido que explicarei logo abaixo. Demorei para “limpar minha ficha”.
Como fui indicada pelo MST, era lógico que coubesse a mim a pesquisa sobre as graves violações de direitos humanos entre as populações camponesas. No “pacote” vieram os indígenas: uma inclusão fundamental, dado o seu amplo genocídio ocorrido durante a ditadura. Assim, embora acompanhasse todas as audiências públicas dos militantes sobreviventes junto à CNV, eu não tinha tempo para também pesquisar. Foi em uma dessas audiências públicas que me dei conta do meu cancelamento.
Alguns familiares de presos políticos viravam a cara, quando ia cumprimentá-los. Uma delas, generosa, resolveu me esclarecer a razão: “Você não está interessada na causa dos mortos e desaparecidos”. Consegui explicar que mal tinha tempo de tocar meu capítulo, e meu “cancelamento” foi cancelado. Estava entre pessoas de bem, o jogo era limpo. Meu cancelamento foi fruto de um reles mal-entendido.
“O mundo só caminha pelo mal-entendido”, escreveu Baudelaire, o maior poeta da língua francesa. E acrescenta: “Sem o mal-entendido seria impossível que nos entendêssemos”. Pois é, não havia WhattsApp no século XIX. O mal-entendido era possível e por vezes abria brechas nos consensos, através das quais novas possibilidade de entendimento poderiam se apresentar. E como é bom quando voltamos a nos entender!
Aquela intriga injusta ocorrida no período da CNV me fez entender o sofrimento paranoide das vítimas de cancelamento: “O que foi que eu fiz? Por que ninguém mais fala comigo?” Entendi também que o cancelamento é o avesso da dialética. A dialética – dialektiké, em grego – é a arte do diálogo (não me cancelem, não quero bancar a erudita, encontrei o termo no Google).
A “verdade”, seja ela qual for, tem muito mais chances de se apresentar, ou de se elaborar, como resultado de um debate honesto do que de brotar límpida e impoluta da cabeça de um gênio. “Tese-antítese-síntese.” Como alcançar esta última, se a possibilidade da antítese for cancelada? Seríamos condenados a girar em torno de uma tese estéril que, na falta da antítese, não produziria a esperada síntese.
Vale lembrar também que, depois de nove meses em que escrevi quinzenalmente para o jornal O Estado de S. Paulo, fui cancelada justamente quando me pronunciei de maneira elogiosa sobre a então candidata a presidente da República, Dilma Rousseff. “Posso não concordar com nenhuma palavra do que você diz, mas defendo até a morte o vosso direito de dizê-las.” A frase é do iluminista Voltaire. No século passado, foi replicada pela a escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall.
Tenho a impressão de que, na cultura do narcisismo em que estamos todos mergulhados, o debate dialético torne-se mais raro. Fruto dessa mesma cultura, o apego de muita gente à garantia narcísica fornecida pelos grupos identitários torna cada vez mais rara a possibilidade de discussões dialéticas. Como a proposta democrática pode conviver, por exemplo, com a prática atual do cancelamento?
A convicção de que, para alguém se pronunciar sobre algum tema, precise estar chancelado por um lugar de fala, teria feito Voltaire se remexer no túmulo. Vivemos num mundo em que cada um deve tornar-se um microespecialista apenas sobre os assuntos que lhe dizem respeito?
Três séculos depois de Voltaire, sob o título de “Lugar de Cale-se” escrevi sobre o “cancelamento” sofrido por Lilia Schwarcz por parte do movimento negro. Seu crime? Ter feito um comentário – bastante irrelevante, a meu ver – sobre um vestido usado pela cantora Beyoncé.
Em vez da busca por um entendimento democrático e universal, a cultura dos cancelamentos visa, ainda que não conscientemente, a construção de uma vidinha social toda dividida em nichos. Nada a ver com o Touche pas à mon pote (Não toque no meu camarada), que fez a França ferver no século passado. Naquela ocasião, o movimento negro buscava proteger-se de insultos e outros crimes praticados por racistas.
Nas páginas de CartaCapital, não tenho temor algum de que este artigo seja cancelado.