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Coluna

Ciência e política na Venezuela

Especialistas brasileiros chancelam vitória de Edmundo González. Teria a "ciência" provado o golpe?

Nossa sociedade vive na era científica. Vimos isso durante a pandemia, quando vacinas baseadas em mRNA foram aplicadas em praticamente toda a população ocidental sem nunca terem sido usadas em pequena escala para outras doenças. A apreensão da população em relação a um tratamento até então considerado experimental tornou-se crime. No caso das eleições brasileiras, o questionamento das urnas eletrônicas, posição histórica da esquerda, também se transformou em “crime” (entre aspas porque a punição depende do acusado, como todo bom crime brasileiro). Quem ousa questionar essas verdades estabelecidas por mentes iluminadas recebe o rótulo onipresente no debate de esquerda de “negacionista”, ou seja, uma espécie de terraplanista que deixou de ser folclórico e se transformou em criminoso.

Há um lado bom da era científica: seria muito constrangedor para a Rede Globo se apoiar numa suposta previsão de Nostradamus para sustentar o apoio ao genocídio imperialista do povo norte-americano. O leitor não se lembra desse episódio? Assista aqui:

Há, por outro lado, o lado ruim. Com algumas credenciais acadêmicas, é possível dar a qualquer tipo de “picaretagem” um rótulo científico. Críticos a essas proposições caem então no campo dos fanatizados, negacionistas. Finalmente, quem discute com a ciência só pode ser um fanático religioso, seja essa religião tradicional ou secular, como no caso das “ideologias”.

Eis que aplicaram esse rótulo ao golpe na Venezuela. A eleição do fascista Edmundo González – apoiador da Mão Branca em El Salvador na época em que era embaixador venezuelano no país caribenho – foi chancelada por pesquisadores, e brasileiros, vejam só!

Peço desculpas por qualquer erro que cometemos ao analisar as provas, mas aqui está a nossa análise. Os cientistas políticos – que na Universidade significa os “estudiosos de processos eleitorais” – analisaram boletins de urna coletados supostamente de forma espontânea por bravos cidadãos venezuelanos que lutam contra a ditadura de Nicolás Maduro. Não foi possível coletar todos os boletins, já que o regime repressor impediu que nossos guerreiros completassem a missão. As urnas que seriam alvo da operação da ONG, cujo nome não foi revelado para proteção dos envolvidos, foram meticulosamente determinadas para que o resultado da projeção representasse a votação em escala nacional. Finalmente, se pegassem boletins de urnas apenas nas seções chavistas, não teriam o resultado que queriam demonstrar.

Fica de exercício para o leitor da reportagem da Folha determinar se não escolheram apenas as urnas das seções da oposição, mas, mais do que isso, fica o exercício de provar se os boletins utilizados na projeção estatística são autênticos ou não. O estudo cai exatamente no mesmo problema do site da oposição, que supostamente apresenta uma vitória com 67% dos votos de Edmundo González: como confiar nos boletins coletados por essa oposição golpista?

Em debate nas redes sociais, questionei as bases do estudo e me disseram que, numa verificação cruzada com os boletins do site da oposição, era possível confirmar sua autenticidade. Ou seja, duas provas sem autenticidade comprovada sustentam uma a outra. É o moto perpétuo da lógica argumentativa!

Não há nada demais no estudo feito pelos brasileiros sobre as eleições venezuelanas. Aliás, há sim. Um dos pesquisadores fala diretamente da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, mas acredito que esse detalhe não tenha nenhuma relevância para a nossa discussão. Fizeram uma simples projeção estatística com as atas que tinham em mãos, cuja distribuição condizia supostamente com a distribuição de preferências políticas de todas as urnas no país e chegaram aos malditos 67% de Edmundo González.

Onde a ciência entrou na questão? Difícil dizer. O ChatGPT poderia auxiliar um leigo a elaborar um simples programa que calculasse o resultado, dadas as entradas. Não há nenhuma grande descoberta aqui. O problema são justamente os dados que baseiam os cálculos, mas isso não é problema da ciência, nos dizem, isso é ideologia!

Sobre os sistemas de informação venezuelanos e sua dificuldade em reportar os resultados, somos obrigados a ficar com o governo venezuelano. Não houve eleições no século XXI no país vizinho que não foram questionadas pela oposição e pelo imperialismo norte-americano; não temos motivos para mudar o critério de nossa avaliação agora. E a capacidade de ataque dos adversários da Venezuela, isto é, o imperialismo, é incalculável. Numa análise racional, todo tipo de informação vinda dos opositores deveria ser encarada com máximo ceticismo.

Mas nós não vivemos num mundo racional, senão um que performa como racional. Na era da teoria de gênero, na qual o que vale é o que se pensa, não o que se é, pensar que é racional é suficiente. Esse é o pós-iluminismo: o método científico, utilizado para superar as explicações religiosas, transformou-se na própria religião. A tradição de questionamento e debate livre de ideias transformou-se no dogma. Como o imperialismo, que veio de seu oposto, o capitalismo competitivo. Nesse cenário, não temos constrangimento algum em nos juntarmos aos terraplanistas.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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