Lançado em 2017, Arábia, filme escrito e dirigido pelos jovens cineastas mineiros João Dumans e Affonso Uchoa, é uma excelente realização cinematográfica brasileira.
O enredo conta a história do operário Cristiano e sua luta por sobrevivência em Minas Gerais durante os anos dos governos Lula e Dilma.
Na forma, os cineastas escolheram o recurso do voice over para que Cristiano conte sua história, permitindo que a audiência a conheça por sua voz.
No entanto, de maneira mais complexa, a opção não é simplesmente estabelecer o ponto de vista do personagem como se fosse o do enredo.
Ao escolher a narração em primeira pessoa, os diretores colocaram o relato de Cristiano em sua boca, mas não o ponto de vista do filme.
Este constrói a história para nós e é controlado por um narrador que está fora da diegese, ou seja, do mundo que está sendo apresentado na tela. É parecido com o narrador implícito da literatura.
Para chegarmos a Cristiano, o filme começa com André, um adolescente que vive em Ouro Preto. Cristiano, que trabalha em uma siderúrgica da cidade, sofre um colapso, e é internado.
A tia de André, uma enfermeira, solicita a ele que busque algumas roupas na casa onde o paciente mora. Ali, o garoto se depara com um caderno onde Cristiano escreveu suas aventuras e, a partir da leitura do adolescente, assistimos ao flashback narrado pelo protagonista.
Entre seus contos estão uma passagem pela prisão por porte de drogas e uma vida na estrada, conseguindo empregos aqui e lá como ajudante em uma plantação de mexericas, pedreiro e operário em uma fábrica de tecidos até chegar o momento presente, na cidade histórica.
Como não poderia deixar de ser, a história de Cristiano é a do que ele faz para sobreviver, ou seja, de sua exploração. Tirando a prisão, suas desventuras e seus círculos de amizades estão associados aos diversos ambientes de trabalho, invariavelmente manual, pesado e de difícil realização.
Em uma das cenas, ele tem um interessante diálogo com um carregador. Eles discutem sobre o que é mais difícil de carregar: um saco de cimento ou telhas. Sozinho, ele tem alguns encontros amorosos, o mais significativo com Ana, também uma operária que perde o bebê que poderia transformá-lo em pai.
A atmosfera é melancólica. A siderúrgica está sempre presente com seus ruídos incessantes e sua poeira que entra nos pulmões. É como um fator determinante na vida das pessoas. Elas necessitam da fábrica, mas também são sugadas por ela.
Com esse artifício, os diretores constroem algo extremamente importante tanto para André (que lê o diário do operário), quanto para a compreensão do narrado do próprio operário.
Nas regras do drama, faz parte de um boa história que o personagem principal passe por alguma transformação que permita a ele chegar a alguma redenção ou superação
No filme, temos também essa transformação que se torna o grande tema do filme. Os cineastas estão interessados em mostrar o processo de tomada de consciência de classe de Cristiano. Daí a importância do narrador implícito.
A cena que descreve esse momento é poética e lembra uma espécie de epifania. Ele fala que está doente: “meus olhos doem”, diz, “não tenho forças para trabalhar”. De repente, ele para de escutar a fábrica: “pela primeira vez, escutei meu coração”.
Cristiano chega a uma conclusão, a um ponto de não retorno: é um indivíduo consciente da História e de seu lugar no mundo. “Queria dizer para os meus colegas que acordei, que enganaram a gente a vida toda”, afirma.
Mas aí vem a escuridão, o colapso. Ele morre? Não é possível saber. Então, por que esse despertar é seguido de uma espécie de coma? Porque talvez represente um momento histórico que não conseguiu evoluir e unir os trabalhadores para um passo adiante que vai além da tomada de consciência.
E aqui estamos nós, não é? No Lula 3, despertos e ainda muito desmobilizados, como se estivéssemos em um coma. “Mas vivo e respirando”, ele diz.
Arábia é um filme essencial e um sopro de criatividade sobre o processo histórico brasileiro recente.