Para definir experimentalismo em arte, em linhas gerais, adotam-se estes pontos de vista: (1) uma linguagem se constrói por autores e leitores ao longo do tempo; (2) algumas práticas se estabilizam, gerando-se formas recorrentes de realização; (3) essas formas admitem ser depuradas, tornando-se cada vez mais sofisticadas, ou, por outro lado, elas são subvertidas; (4) tal subversão formal caracteriza o experimentalismo nas artes.
Em vista disso, um dos modos de subverter a linguagem dos quadrinhos se faz mediante a articulação com outras linguagens; no quadrinho brasileiro, a posição do artista mais criativo em experimentações assim cabe, sem dúvida, a Luiz Gê. Além da subversão nas narrativas e na caracterização das personagens, Luiz Gê subverte a linguagem das HQs articulando-a com outras linguagens de, pelo menos, dois modos: (1) as linguagens encontram-se em presença umas das outras sem necessariamente haver fusões entre elas, permitindo eventuais separações; (2) as linguagens se combinam na construção de novas linguagens.
Nos trabalhos de Gê, habitualmente, combinam-se os quadrinhos com variadas linguagens: (1) “Tubarões voadores” foi transformada em música por Arrigo Barnabé; (2) “O caçador de crocodilos” insere-se na ópera “O homem dos crocodilos”, também de Arrigo Barnabé. “Tubarões voadores” se coloca entre HQs experimentais, pois: (1) sua narrativa se apresenta fragmentada, com o narrador a relatar o ataque dos tubarões enquanto os desenhos mostram ações paralelas; (2) graficamente, as imagens se desenvolvem em muitos estilos; (3) a composição HQ e música, por sua vez, aponta para novas experiências nas linguagens musicais. Na linguagem da canção, das canções populares às eruditas, articulam-se, comumente, poemas e musicais; nesse contexto, possivelmente, “Tubarões voadores” talvez seja a primeira canção cujo texto deriva dos quadrinhos. Essa experiência, porém, não é única, pois Arrigo faz o mesmo com a HQ “O caçador de crocodilos”, a qual, igualmente a “Tubarões voadores”, possui processos de enunciação e metalinguagem intrincados, com narradores e personagens interagindo constantemente.
Por ocasião da ópera, os espectadores recebem a HQ “O caçador de crocodilos” logo ao entrar no teatro; no decorrer da encenação, projetam-se alguns quadrinhos em telas dispostas no palco para, na cena final, as luzes se acenderem e a HQ ser lida ao som da versão musical de Arrigo Barnabé, inaugurando-se, do ponto de vista experimental, a primeira e, até então, a única ópera em que se incluem quadrinhos no libreto.
Dessarte, nessas duas parcerias entre Luiz Gê e Arrigo, as HQs funcionam independentemente, ambas já se publicaram separadamente; a “Borba Gata”, porém, difere-se, não se tratando de colar a HQ sobre o corpo do manequim, que poderia, eventualmente, separar-se dele; na Borba Gata, a narrativa bidimensional da HQ encontra-se, justamente, combinada com a tridimensionalidade do manequim. Nessa articulação, subverte-se a ordem de leitura, distribuída ao longo do corpo tridimensional; dessa forma, a HQ se desenvolve por esse mesmo corpo, com as linguagens da HQ e da escultura comentando-se mutuamente, feito quando a Borba Gata movimenta o braço na HQ, desenhada, exatamente, sobre o braço do manequim.
Por fim, talvez o exemplo mais radical de experimentalismo em HQ seja o de Dennis Cramer e Justine Mara Andersen. Dennis Cramer, com roteiro de Grant Morrison, desenhou algumas aventuras de “Os invisíveis”; Cramer é, ainda, o autor das aventuras de Mara. Os quadrinhos de Mara classificam-se entre os quadrinhos eróticos, combinando podolatria com doses leves de sadomasoquismo; para Mara, ser barefooter revela-se uma forma de arte e, por andar constantemente descalça, ela vive se metendo em situações constrangedoras ou ferindo-se em cacos de vidro, bitucas de cigarro ainda acesas etc.
Em suas aventuras, Dennis Cramer se transformou em Mara; atualmente, ele se chama Justine Mara Andersen, basta acessar o endereço eletrônico barefootjustine.com para verificar que Dennis Cramer se tornou mulher, combinando sua Mara com a Justine do conto do Marquês de Sade, “As desventuras da virtude”. Para concluir, se HQ experimental se define na articulação entre a sua semiótica e outras linguagens, Dennis Cramer realiza, em seu modo de vida experimental, história em quadrinhos, performance e body art.