Discorrer sobre Portugal, se o tema é literatura, convém citar Camões e Fernando Pessoa; se for cinema, deve-se lembrar de Manuel de Oliveira; se for guitarra portuguesa, admira-se o músico Carlos Paredes; se o tema envolve as histórias em quadrinhos, trata-se de João Carlos Fernandes, quem se coloca, sem sombra de dúvida, ao lado de artistas como Will Eisner e Guido Crepax. Em vista disso, para cuidar de sua obra, escolheu-se a reconhecida HQ “A pior banda do mundo”, da qual se comentam, apenas, dois aspectos: (1) a construção simbólica da existência; (2) os labirintos do mundo e da mente.
Na trama, tematiza-se uma banda de jazz formada por piano, baixo, bateria e saxofone. Em Portugal, porém, o título adquire outros sentidos porquanto, naquela variação da língua, HQ se diz banda desenhada, semelhantemente à “bande dessinée”, do francês; a pior “banda” do mundo, portanto, pode significar, ironicamente, a pior HQ do mundo.
Dessa maneira, em “A pior banda do mundo”, contrariamente aos textos padronizados, não se narram as aventuras do grupo; nela se realiza, isto sim, a criação de um espaço mítico, paradoxalmente, habitado por homens comuns. Nas tramas, cada episódio ocupa duas páginas; nesse formato, todas as páginas juntas não constituem apenas uma narrativa, mas várias delas, dispostas não em sequência, mas paralelamente; em meio às muitas histórias, nas três primeiras encaminha-se a arquitetura mítica da série. Nessas circunstâncias, a palavra “arquitetura” não se utiliza somente como metáfora da construção narrativa e temática da HQ, quer dizer, de sua semiótica, mas, ainda, enquanto arquitetura do mundo, ou seja, consideram-se projeções simbólicas e mitologias sobre a cosmologia.
Na primeira página da série, intitulada “A pior banda do mundo (prólogo)”, os músicos, que não tocam profissionalmente, reúnem-se, diletantemente, para ensaiar no porão de uma alfaiataria abandonada; eis os membros do grupo: (1) Ignacio Kagel, contrabaixista e fiscal de isqueiros; (2) Idálio Alzheimer, pianista e meteorologista; (3) Anatole Kopek, baterista e criptógrafo de segunda classe; (4) Sebastian Zorn, saxofonista, líder da banda e serrilhador de selos. Conforme se observa, as respectivas profissões se revelam esdrúxulas e quase inúteis – a profissão de Zorn, o saxofonista, chega a ser bizarra –; a música, contudo, encaminharia, a seu modo, a transcendência de cotidianos vividos quase estupidamente. Isso de fato acontece, mas não segundo as expectativas habituais do leitor, ou seja, mediante a beleza da música; a pior banda do mundo revela-se tão ruim que, os instrumentistas, imaginando tocar a mesma música, realizam, sem se dar conta, temas distintos.
No caso, a transcendência parece quase zen; sem saber, os músicos terminam se comportando feito alguns artistas contemporâneos, apostando no acaso, semelhantemente a John Cage ou Otomo Yoshihide: (1) Cage propôs escutar os doze prelúdios e fugas para o cravo bem temperado, de Johann Sebastian Bach, simultaneamente; (2) Yoshihide estipula regras rigorosas de improvisação, mediante as quais os músicos improvisam, por exemplo, buscando ignorar os demais membros da sessão.
Ainda nessa temática, na segunda HQ da série, “O fenômeno acústico”, o som da banda ressoa oito andares acima, chegando aos ouvidos de um músico profissional, o compositor pianista Dimitri Sikorsky, quem busca compor sua obra máxima, tornando-se impossível, entretanto, trabalhar nessas condições; aos poucos, em vez de resistir, Sikorsky cede aos transes da banda e passa a escutar, em estado contemplativo, a música do mundo, dispersa no vento, nas buzinas etc.
Ora, nessas condições, configura-se uma arquitetura mítica. Nesse mundo possível, (1) o porão, entre o caos e a harmonia, simbolizaria as forças telúricas, emanadas pelo som da banda; (2) o oitavo andar, onde vive o compositor, representaria o mundo celeste, ou seja, o logos; em síntese, a terra e o céu surgem simbolizados nos extremos do edifício. Ainda nessa semiótica, na terceira HQ da série, “Inextricável labirinto do destino”, os limites entre a terra e o céu se encontram preenchidos por vastas escadarias, símbolos dos labirintos do cosmo, pelas quais transita, perdida em possibilidades, a mente em confusão, simbolizada, na história em questão, pela moradora indecisa.
Nesse mundo, com escadarias de possibilidades e mundos viáveis entre céu e terra, o homem, no centro, permite-se escapar via o caminho zen, feito a pior banda do mundo e o maestro, desde que promova, como a banda, ou capte, como o compositor, as forças telúricas em dialética com as forças olímpicas. Isso posto, no cosmo da pior banda do mundo, enquadrar-se socialmente coincide com a alienação dessas forças libertadoras; captá-las decorre, consequentemente, em desajuste, pois se deixa o mundo comum mediante o acesso a novas formas de percepção.