Lançado em 1991, o filme Europa, dirigido pelo cineasta dinamarquês Lars von Trier, inspira o meu texto dessa semana devido ao aprofundamento da crise do capitalismo que parece acelerar em quinta marcha.
Europa é um filme incrível. Seu enredo conta a história de Leopold Kessler (Jean-Marc Barr), um jovem americano que desembarca na Alemanha apenas três meses após o fim da II Guerra Mundial.
Kessler chega a um país destroçado e arruma um emprego, com a ajuda de um tio, em uma companhia ferroviária. Seu trabalho consiste em atender os passageiros nas cabines da primeira classe. Ali, ele conhece Katharina Hartmann (Bárbara Sukowa) por quem se apaixona e se casa. Katharina é filha do capitalista dono da companhia ferroviária chamada Zentropa. No filme, durante a guerra, a macabra empresa tinha como modelo de negócios levar os judeus para Auschwitz.
O filme, rodado em preto e branco, lembra um noir americano e a personagem de Katharina tem elementos de femme fatale. Há uma atmosfera lúgubre, pesada e sombria. Tudo é sempre noturno, mas o mistério é saber se Kessler pode sobreviver nesse ambiente. Lars von Trier mistura elementos surrealistas e brechtinianos para descrever as ambiguidades, as entrelinhas da atmosfera nazista/capitalista dos que sobreviveram ao conflito. Pelos olhos aparentemente hipnotizados de Kessler, ele busca nos mostrar o horror por trás da aparência de civilidade.
Ao mesmo tempo, apesar do cenário pós-guerra, o tema de Europa tem algo de contemporâneo no relativismo encampado pelo protagonista. Kessler é retratado como ingênuo, mas essa ingenuidade tem algo de paradoxal. Seu relativismo está mais atrelado à época em que o filme foi lançado do que ao período histórico que retrata.
Em um momento marcante, a crítica ao relativismo de Kessler é exposta como hipocrisia. A régua moral vem do diálogo aparentemente civilizado entre ele e os nazistas confessos representados pelos integrantes da família Hartmann e por um padre amigo deles (Erik Mork), em um jantar, que, no diálogo a seguir, descreve uma espécie de pecado dos “mornos”:
Padre: A religião tem um papel importante em tempos de guerra. E mais ainda quando o silêncio das armas perturba o nosso espírito. Quando oramos a Deus em tempos de guerra, confiamos na ajuda Dele se temos fé em nossa causa.
Leopold Kessler: Perdão, padre, mas… e quanto ao outro lado? O inimigo também tem fé em sua causa.
Padre: Claro, sr. Kessler. Deus está do lado de todos. Mas quando se luta por uma causa com fervor, é mais fácil para Ele perdoar quem desobedece às Suas leis.
Katharina Hartmann: A quem Deus não perdoa?
Padre: Os descrentes. Os “mornos” que não tomam partido. Estes são condenados a vagar eternamente. Deus não tem piedade deles, sr. Kessler. “Assim, porque és morno, e não és quente nem frio, vomitar-te-ei da minha boca”.
A citação do padre está na Bíblia, no Apocalipse de João. Há uma ironia cortante na encenação. Confesso que tenho pensado muito nessa cena e como ela faz sentido no atual momento em que escrevo essas linhas. Há um genocídio acontecendo na Palestina. Há massacres acontecendo em outras partes do mundo, como no Sudão e na Armênia. Há dezenas de assassinatos cometidos por forças estatais fascistas em praticamente todos os países do mundo, incluindo os massacres cotidianos no Brasil.
Mas, a reação daqueles em posição de liderança, principalmente os que se dizem progressistas, eleitos ou não, é morna. Eles evitam justamente tomar partido. “Israel está exagerando, mas o Hamas é terrorista”.
A atual escalada da violência na Palestina está para completar um mês. Até agora, nenhum governo ou liderança política mostrou verdadeiramente oposição aos crimes do Estado de Israel. Os que são a favor não hesitam. Foi assim também na II Guerra Mundial? Aparentemente, foi sim. As tropas europeias só invadiram a Alemanha depois que o Exército Vermelho já estava sitiando Berlim e a queda era iminente.
Atualmente, imagens de crianças mortas e mutiladas inundam as redes sociais. A reação continua sendo pífia. De repente, o choque de filmes como Europa ou Vá e Veja, também sobre a II Guerra Mundial, não consegue mais representar a intensidade da realidade que testemunhamos em nosso próprio momento histórico, como sujeitos da história.
Os mornos, os capitulares covardes que não condenam a barbárie atual, permitem que o sistema capitalista apodrecido ganhe sobrevida. Os mornos, querendo sobreviver, viram à direita sem piscar, apostando que estão a salvo em sua covardia individualista, mesquinha e cúmplice. Não é à toa que o filme, de 1991, se chama Europa ao retratar como a globalização neoliberal já havia estabelecido seu reinado de horror. O que ele descreve ali está claro como água cristalina.
Os mornos ignoram com seu medo infantil, sua preguiça intelectual, seu narcisismo adolescente, seu cálculo oportunista, seu silêncio conivente e sua lacração na rede social. Eles leem os jornais diários e as pesquisas de opinião.
Eles agem – com sua censura e sua polícia – para manter tudo como está: podre como eles mesmos.