A reunião de histórias em quadrinhos “Porta do inferno” foi lançada em dezembro de 2018, uma produção conjunta das editoras alternativas Gordo Seboso, do Luiz Berger, e Escória Comix, do Lobo Ramirez. Logo na capa, no desenho de Abraham Diaz, há uma cena grotesca: um demônio voyeur observa escondido, fumando uma bomba, o casal escroto fazendo sexo sadomasoquista sobre a privada em um banheiro suspeito.
Uma das qualidades da obra é, justamente, esse grotesco. A palavra “grotesco” deriva de “grotta”, cujo significado é “gruta”; ela se refere a certo tipo de ornamentação encontrada em escavações feitas em 1500, na Itália. Essas ornamentações consistiam em figuras monstruosas e híbridas de diferentes ordens da natureza: humanos com corpos de cavalos ou cabeças de touros, animais com traços de folhas e flores, sereias e tritões etc. Em concepções pagãs, a moral é bem diferente do cristianismo, cujas origens são posteriores àquelas ornamentações, por isso mesmo, não se deve ver nelas desequilíbrios infernais; contudo, quando foram encontradas, um período histórico dominado pelas seitas cristãs, elas pareceram demoníacas aos olhos de alguns. Mas como isso se relaciona com a “Porta do Inferno”?
Em seu livro sobre o grotesco, o teórico da arte e da literatura Wolfgang Kayser nos ensina que a Porta do Inferno é um dos temas relacionados ao pintor holandês Pieter Bruegel. Em um de seus quadros mais conhecidos, “Os provérbios holandeses”, nas figuras expressando o provérbio “confessar-se com o diabo”, surge o diabo confessor entre os seres humanos; em outra pintura, “Gret, a louca”, explicitam-se as imagens da própria Porta do Inferno e dos demônios escapando dela para penetrar no mundo dos homens. Tais demônios lembram dos ornamentos encontrados nas grutas: o demônio confessor, aquele do quadro dos provérbios, tem a cabeça na forma de vegetal; semelhantemente, ao redor da imagem de Gret, há insetos com rostos humanos, cabeças sustentadas apenas por braços e pernas… enfim, são figuras grotescas saindo dos infernos.
Na HQ organizada pelo Luiz e o Lobo, a Porta do Inferno é aberta por dois assaltantes, deixando escapar quem estava lá dentro; a partir desse mote, cada artista convidado dá a sua versão da invasão dos demônios. A história do mote é do Luiz Berger; as demais seguem esta ordem: (1) “Quero voltar para o inferno”, da Emilly Bonna: duas irmãs siamesas demoníacas entram em crise quando uma quer ficar na Terra, enquanto a outra pretende voltar para o Inferno; (2) “Ave Satã, caralho!”, do Diego Gerlach: um pastor evangélico engana seus fiéis com falsos milagres, esses, porém, longe de serem ovelhas inocentes, são tão canalhas como o pastor; (3) “Conexão inferno”, do Lobo Ramirez: condenados ao Inferno, uma mãe e seu filho abortado fogem da perseguição dos demônios; (4) “Fuim – xupador de ossos”, do Victor Bello: o demônio Fuim, um ser invertebrado, rouba os ossos dos humanos para se sustentar; (5) “Neo – Mexico 2999”, do Abraham Diaz: dois demônios discutem sua relação conjugal.
Longe de serem histórias malucas bem desenhadas, os roteiros são sensacionais; entre os temas tratados, vale a pena enfatizar a condenação da tortura praticada por policiais, a denúncia da estupidez das seitas religiosas, a afirmação dos direitos da mulher sobre seu próprio corpo, a exposição das mazelas e da pobreza dos países explorados pelo imperialismo. O teórico da literatura Tzvetan Todorov observa ser mais fácil tratar de temas tabus atribuindo práticas humanas a monstros e demônios, os quais se tornariam metáforas exageradas. “Porta do Inferno” do Gordo Seboso e da Escória Comix, contudo, vai mais longe, pois na coletânea não são os monstros que se tornam metáforas dos humanos, contrariamente os humanos são metáforas do inferno, agindo pior que os próprios demônios. Para quem vive no Brasil de 2022 em momentos tão macabros, com o cenário político invadido por monstros medonhos, é cada vez mais fácil entender quem abriu a “Porta do Inferno”: os fascistas, os fanáticos religiosos, os imperialistas promovendo assassinatos em massa.

Artigo publicado, originalmente, em 27 de agosto de 2022.