Recentemente assisti a um filme do Luis Buñuel chamado Esse Obscuro Objeto de Desejo (Cet obscur objet du désir, 1977). Esse filme foi o último da carreira desse brilhante cineasta espanhol. O tema que escolheu foi recorrente em sua obra e trata-se da representação crítica à classe dominante.
O filme é um exercício sobre a forma cinematográfica, em especial o uso de técnicas para representar ponto de vista. Aqui, Buñuel usa o flashback, que na literatura seria o equivalente à narrativa em primeira pessoa, para marcar o ponto de vista do personagem principal, um homem rico de meia idade.
Em meio às turbulências políticas do final da ditadura franquista, o personagem conta, para estranhos em uma viagem de trem da Catalunha a Paris, a história de sua paixão pela jovem Conchita, uma empregada doméstica.
Nós brasileiros temos muita sorte de ter, entre os gênios da literatura, Machado de Assis, que exercitou o ponto de vista como um mestre e nos deixou lições incomparáveis. O leitor de D. Casmurro enxerga no protagonista Mathieu Faber (Fernando Rey) um espécie de Bento Santiago moderno.
O objetivo do cineasta é questionar a adesão do público à história de Mathieu. Mais do que isso, se entende o ponto de vista do personagem como o ponto de vista do filme e, até mesmo, o ponto de vista do diretor. Sim, são coisas diferentes.
Ao longo do filme, Buñuel dá inúmeras pistas da falibilidade do narrador. Um dos principais artifícios é usar duas atrises para interpretar Conchita (Carole Bouquet e Ângela Molina), o que também lembra o surrealismo.
A presença das duas atrizes é um indicador de que o narrador não é confiável, visto que ele varia a descrição da amante, que ele classifica como uma infiel, prostituta, falsa e interesseira.
Assistir ao filme no atual momento histórico é perceber questões políticas complexas. Obviamente, Buñuel mostra que Mathieu, como o escravocrata Bento Santiago, é um homem horrível.
Mas, não é fácil perceber isso. Na maioria dos casos, as pessoas oscilam em aceitar que Conchita é uma mulher falsa (ponto de vista de direita) ou avaliam que o filme é machista ao representá-la como falsa (ponto de vista da esquerda identitária).
Nos dois casos, poupa-se a crítica à classe dominante, o verdadeiro foco do filme.
Nada mais atual.