Muito se fala em obscurantismo, identificando negacionismos que mais convém ao falante. Obscurantismo da vacina, obscurantismo das urnas, obscurantismo da terra plana ou da crença em Deus. E, tudo bem, o leitor pode considerar que todos são reais e nefastos, seja por imbecilizar as pessoas, seja por atentar contra a segurança institucional ou sanitária, reservado o direito do outro de argumentar o que bem entende e, se necessário, ser desmentido por palavras e não pelo aparato repressor do Estado. Porém, alguns negacionismos passam batidos, sempre que se coloca a verdade a serviço do dado ideológico, e não o contrário.
Aqui gostaria de apontar um deles, muito propagado pelos admiradores do futebol, e que, apesar do que pode parecer, não se reduz a uma posição sobre um mero entretenimento, mas afigura-se algo que pode ser um tiro de morte na cultura brasileira. Falo aqui do mito do técnico estrangeiro, propagado aos quatro cantos como a solução definitiva para os problemas do futebol de clubes e a seleção brasileira. Arvorando-se nos recentes trabalhos de sucesso de Jorge Jesus, no Flamengo em 2019, e Abel Ferreira, no Palmeiras desde 2020, tomam como taxativa a ideia de que ambos fizeram sucesso devido à obsolescência do futebol e dos treinadores brasileiros.
Mentira deslavada ou estupidez latente, à escolha do leitor. Na verdade, nos últimos anos, dois campeonatos nacionais foram vencidos por estrangeiros: a já citada campanha de Jorge Jesus e o título de Abel Ferreira em 2022. Dois brasileiros bateram vários estrangeiros em 2020, Flamengo de Rogério Ceni, e 2021, Atlético Mineiro de Cuca. Tudo bem que em matéria de Libertadores, são três para um, com Dorival Júnior se metendo entre Abel e Jesus. Mas em matéria de Copa do Brasil, o três para um se inverte: Tiago Nunes com Atlético Paranaense em 2019, Abel Ferreira com Palmeiras em 2020, Cuca com Atlético Mineiro em 2021 e Dorival Júnior com Flamengo em 2022. Leve-se em conta que não é uma questão simplesmente de treinador. Os trabalhos mais vencedores, aí citados, são justamente aqueles com mais investimento e melhores elencos, notadamente Palmeiras e Flamengo.
E, quando o tema são treinadores em times de baixo investimento, a coleção de fracassos é gritante. Jesualdo Ferreira (Santos), Turco Mohamed (Atlético Mineiro), Hernán Crespo (São Paulo), Domènec Torrent (Flamengo), Vitor Pereira (Flamengo), Jorge Fossatti (Internacional), Eduardo Coudet (Atlético Mineiro), Ricardo Gareca (Palmeiras), Diego Dabove (Bahia), Lothar Matthäus (Atlético Paranaense), e grande elenco. Faço questão de enfileirar nomes, para que o leitor reflita se tal lista não é equiparável à de treinadores brasileiros com trabalhos malsucedidos. Alguns, seguramente, o leitor sequer se lembra de sua passagem pelo Brasil. Como o lendário volante e capitão da Alemanha de 1990, vergonhosamente fracassado em terras tupiniquins, nos idos dos anos 2000.
Entretanto, a sanha vira-lata salpicada de fetiche privatista de muitos torcedores brasileiros, desafortunadamente, a maioria da falsa esquerda ongueira anti-Neymar, chancela esta condução do futebol brasileiro por argentinos e europeus. A ponto de isso já bater às portas da seleção brasileira, o que seria uma humilhação equiparável ao 7×1: imaginar que o trabalhador brasileiro (afinal, não é o treinador um trabalhador?) não tem soberania sobre o principal ativo cultural de seu país.
Pior é saber que, possivelmente, este mesmo torcedor vai descobrir que Carlo Ancelotti não é mais que um Odair Hellmann vestido de Dolce&Gabbana. E isso não é demérito para Odair, que não é o melhor treinador brasileiro, mas não necessariamente deve para o treinador de uma grife como o Real Madrid. Assim como eu não necessariamente devo para um editor de uma grife como New York Times.
O que existe é um abismo entre as oportunidades. Paulo Bento, fracassado no Cruzeiro, treinou a Coreia do Sul em 2022. Por que não Odair? Preconceito e desprezo. De todas as partes.