Quem me falou do Delmo Montenegro pela primeira vez foi o poeta Fabiano Calixto; isso foi em 2005, na Casa das Rosas, na cidade de São Paulo, quando o Fabiano me avisava do lançamento de “Ciao cadáver”, publicado pela editora Landy, na coleção Alguidar, dirigida pelo também poeta Frederico Barbosa.
Desde aquele tempo, somos amigos; o Delmo, além de escrever o prefácio do meu primeiro livro de poemas, “O retrato do artista enquanto foge”, lançado em 2007, praticamente organizou o livro para mim; em 2008, estivemos juntos no projeto “Fome de formas”, editado pela Demônio Negro. Na coluna de hoje, quero tratar de seu livro “Recife, No Hay”, de 2013, uma das obras vencedoras do Prêmio Pernambuco de Literatura; antes, porém, relembrarei “Ciao cadáver”, cujos poemas são fantásticos. Delmo é voz singular na literatura brasileira contemporânea; para fruir melhor de sua poesia, bastante hermética, vale a pena começar pelo segundo poema do livro, “Apocalipsis cum figuris”.
Em linhas gerais, “Apocalipsis cum figuris” é um longo poema, em que o autor intercala imagens de partituras da música erudita contemporânea com versos curtos e vocabulário sintético, formado basicamente por substantivos e compostos nominais inéditos em português, havendo, ao longo dos versos, a realização de, pelo menos, quatro temas: (1) o tema da navegação, quando é narrada a viagem de barco, atualizando a versão de Delmo do tópico da nave dos loucos; (2) o tema musical expresso pelas partituras, no qual o poeta aproxima as vanguardas da música e da literatura; (3) o tema mítico, desencadeado por referências ao I-Ching; (4) há metalinguagem, pois o poeta explicita o fazer literário em passagens do texto.
O poema de Delmo reflete procedimentos recorrentes da poesia dita pós-moderna, isto é, referências a outros textos enquanto modo de composição, que, segundo a crítica literária Marjorie Perloff, encontra origens em obras como “Passagens”, de Walter Benjamin, escrito entre 1927 e 1940, composta 75% de textos alheios. Essa, porém, não é a qualidade principal do poema; o que chama atenção em “Apocalipsis cum figuris” é a maneira de Delmo, valendo-se da estética pós-moderna, subvertê-la não em suas formas de entender e explicar o mundo, mas no encaminhamento dado por ela ao futuro, justamente porque, contrariamente às ditas “distopias” da pós-modernidade, ele faz um poema otimista, lembrando das esperanças próprias da modernidade.
Confiantemente, Delmo enuncia a poesia não com virtuosismo literário, mas apostando na capacidade de navegar nas ondas na Música Nova, aludindo a toda consciência ou loucura derivadas daquelas composições. Entretanto, de 2005 a 2013, o que mudou naquele poeta? Do transatlântico de “Apocalipsis cum figuris”, repleto de malucos – lembro-me da nave dos loucos em “Seraphim Ponte Grande”, romance de Oswald de Andrade –, o poeta segue no segundo livro na prancha de surfe, segundo se lê em “Surfin’bird”, bem mais conciso, começando assim:
“vamos para a praia dos nervos / para as geleiras / infames // desossar orquídeas / montar na prancha dos assassinos // o grande / kahuna // espera / por // nós”
Delmo prossegue insistindo no potencial poético das referências e citações, contudo, não vou me deter nas muitas leituras traçadas via “o grande kahuna” e suas mitologias, ou pelo título do poema, o mesmo do conhecido rock’n’roll do grupo The Trashmen. Isso não muda na poesia de Delmo, o que parece mudar é o tom eufórico do “Apocalipsis cum figuris”, pois já não há mais a comunidade no transatlântico, agora o poeta surfa sozinho na prancha; da nave dos loucos, ele segue na prancha dos assassinos; o destino é a praia dos nervos e as geleiras infames.
O tom desolado permanece ao longo do livro; para citar somente alguns versos, separei estes: (1) “os animais velozes da dor / não / cansarão / de / visitar / a / minha / casa”, do poema “Os animais velozes”; (2) “último jato de amor / sobre // a // flor morta”, de “Viaduto Santa Efigênia”; (3) “os poetas são como / dinossauros // todos vão ser extintos”, de “Dinossauros”; (4) “solte sua voz / valvulada // durma comigo // seja meu cadáver esta noite”, de “Eros Unbound”.
O desencanto, porém, não deve ser entendido enquanto enfraquecimento da poesia; ao insistir no tom, Delmo não pode ser confundido com poetas cujos versos parecem se afirmar apenas nessa ou em outras vocações sentimentais. Se, em “Recife, No Hay”, Delmo tematiza a aflição, isso se faz em meio aos demais temas, bem mais constantes, contundentes e definidores de sua poética, quer dizer: (1) pleno domínio da linguagem verbal e das formas poéticas; (2) universo escatológico; (3) imaginário noturno; (4) a poesia projetando-se fora do texto e disseminando novos sentidos; (5) a preferência pela poesia violenta – na dedicatória do livro ele me escreveu “entre a síntese e a destruição, espero que aprecie este Recife, No Hai” –.
Por fim, encerro essa breve notícia sobre Delmo Montenegro com o poema “A tartaruga negra”, no qual, em meio às angústias de “Recife, No Hay”, surge a energia vital do poeta atravessando as destruições.
“em Dujiangyan / na província de Sichuan // um menino / preso sob as ferragens / terá as pernas / amputadas // para que os bombeiros / possam fazer o resgate //enquanto os enfermeiros lhe cercam // o sheishuku explode / de suas pernas: // Gui Xian – a tartaruga / Baihu – o tigre / Quinglong – o dragão / Zhuque // – a fênix”