Para encerrar o tópico do gênero gramatical, resta discutir a veiculação de conteúdos ideológicos por meio dele. O linguista brasileiro José Luiz Fiorin, em seu ensaio “Linguagem e ideologia”, publicado em 1988, mostra haver questões linguísticas carecentes de ideologia, por exemplo, o número de vogais e consoantes de determinada língua ou a transitividade verbal. Entretanto, quando tratamos do gênero gramatical, há relações entre a categoria linguística e o sexo dos falantes; dessa maneira, porque tais falantes vivem em sociedades nas quais podem ser encontrados valores baseados em diferenças sexuais, é possível determinar valores ideológicos nos usos do gênero gramatical.
No Latim há os três gêneros masculino, feminino e neutro, levando a acreditar, erroneamente, que os seres considerados assexuados pertenceriam ao gênero neutro. Contudo, segundo Fiorin, nas páginas 14 e 15 do ensaio mencionado anteriormente, encontramos estas explicações:
“Os gêneros masculino, feminino e neutro do latim correspondiam a uma visão mítica e antropomórfica do mundo. Eram neutros os nomes de coisas consideradas inertes, passivas ou produtos. Os nomes de árvores terminadas em “-us” (terminação que servia, muitas vezes, para distinguir o masculino do feminino em “-a”) eram femininos, porque a árvore é reprodutora, gera o fruto. Já o nome do fruto era neutro (malus/macieira, malum/maça).”
Os falantes do português contemporâneo não compartilham a mesma visão de mundo de nossos antepassados do Império Romano; com conotações sociais cercando o discurso científico moderno, dando-lhe o crédito de revelador de verdades, seria difícil para nós vermos sexo nas árvores, cujo significado sexual seria neutro, com a palavra realizando-se no gênero gramatical feminino.
Em português, há algumas relações entre gênero gramatical e ideologia, por exemplo, nos pronomes de tratamento “senhor”, “senhora” e “senhorita”, quando são reservados para as mulheres dois pronomes para distinguir as mulheres casadas, as “senhoras”, das solteiras, as “senhoritas”, revelando-se diferenças sociais por meio da linguagem. No capitalismo, a família reproduz as relações de trabalho; segundo Clara Zetkin, nessas relações conjugais, o marido realiza o papel do patrão e a mulher, do trabalhador, afinal, alienada no trabalho doméstico, a mulher oscilaria entre a prostituição conjugal e a escravidão ao cuidar do lar, dos filhos e do marido. Nessa realidade familiar, cabe distinguir, semelhantemente a quaisquer valores de troca, as mulheres casadas, que já teriam marido, isto é, já seriam possuídas por alguém, das solteiras, as mulheres disponíveis para o contrato de escravidão chamado casamento burguês. Entretanto, com a emancipação feminina, mesmo ainda parcial ou em vias de realização plena, diferenciar “senhora” e “senhorita” tornou-se, atualmente, arcaísmo, quer dizer, tornou-se forma linguística caída em desuso.
Não é difícil concluir, portanto, que mudanças sociais se refletem na língua, dando-se primeiramente na história, mediante a interferência humana, para depois surgiram na língua em seus discursos e vocabulários, sendo bastante ineficaz mudar as palavras antes de fazer quaisquer reformas ou revoluções.