Nessa terça feira de Carnaval, separei cinco poemas da literatura brasileira sobre o tema e um dos sambas-enredo mais bonitos do nosso repertório. Primeiramente, escolhi o poema “Marinha”, de Murilo Mendes, um poema em que marinheiros trocam a disciplina da esquadra pela folia da festa:
“A esquadra não pôde seguir pros exercícios / porque estava nas vésperas do carnaval. / Os marinheiros caíram no parati / e nos braços roliços e cheiros / de todas as mulatas que têm aí pela cidade. / A esquadra tornou a não poder seguir / porque era depois do carnaval, / a turma se sentia mal depois do carnaval. / Dava uma preguiça tamanha na guarnição / que o almirante resolveu não fazer nada. / Depois de muita mangação a esquadra foi-se embora / com bandeirinhas, dobrados pacholas tocando no cais, / mas o pessoal caiu de repente no maxixe. / O Minas e o São Paulo pararam no alto mar, / deu cerração, foi a conta, a esquadra voltou. / O embaixador inglês foi no palácio do governo, / engasgou, falou na aliança dos dois países amigos, / acabou oferecendo dois mil contos pela esquadra. / O governo aceitou, mandou mil pros órfãos turcos, / com o restante deu um bruto baile depois caiu na vadiagem.
Em seguida, não poderia faltar o famoso poema “Um homem e seu Carnaval”, de Carlos Drummond de Andrade, em que a festa se confunde com melancolia:
“Deus me abandonou / no meio da orgia / entre uma baiana e uma egípcia. / Estou perdido. / Sem olhos, sem boca / sem dimensões. / As fitas, as cores, os barulhos / passam por mim de raspão. / Pobre poesia. / O pandeiro bate / é dentro do peito / mas ninguém percebe. / Estou lívido, gago. / Eternas namoradas / riem para mim / demonstrando os corpos, / os dentes. / Impossível perdoá-las, / sequer esquecê-las. / Deus me abandonou / no meio do rio. / Estou me afogando / peixes sulfúreos / ondas de éter / curvas curvas curvas / bandeiras de préstitos / pneus silenciosos / grandes abraços largos espaços / eternamente.”
Em seguida, um soneto dos 5555 sonetos do Glauco Mattoso, o “soneto 500 – Vicioso”, em que o poeta se lembra da festa em meio a seus fetiches e metalinguagem:
“Poema lembra amor, que lembra carta, / que lembra longe, e longe lembra mar, / que lembra sal, e sal lembra dosar, / que lembra mão, e mão alguém que parta. // Partir lembra fatia e mesa farta; / fartura lembra sobra, e sobra dar; / dar lembra Deus, e Deus lembra adiar, / que lembra carnaval, que lembra quarta. // A quarta lembra três, que lembra fé; / fé lembra renascer, que lembra gema, / a gema lembra bolo, e este o café. // Café lembra Brasil, que lembra um lema: / progresso lembra andar, que lembra pé, / e pé recorda alguém que faz poema.”
Agora, o poema “Batucada na calada”, do poeta Pedro Rocha, carregado de erotismo, no qual o poeta encontra a namorada sambando descalça no meio da farra:
“batuque na calada / ela sai descalçada / nem para na esquina / que me esqueceu / de me chamar pra batucar / com ela camela / na calada daquela esquina / do ano passado / no carnaval que era / aquela época era / caramela / purpurina / serpentina / minha mina / agora sai descalçada / batuque na calada / esquininha / mamulenga / caçarola / girafuda / batuque na calada / batucada lavada em chão de botequim / não falou nada pra mim / passou que nem moitola / submarina / metrôla / sambando arrastando confete / pra cima dos outros / escaldada na madrugada / dzi croquete / que drag rapá (fred mercury) // batuque na calada descalçada / suada sebosa / saída da tuba / jocasta / gostosa / batuque na calada tem estudo / metida a estandarte / eu bamba no poste / me olhou de quina / fez fantasma / nem quis competir a fantasia / ela de nu, eu de gnu / ela de nu, eu de gnu / ela de nu, eu de gnu / ela de nu, eu de gnu // e ia / supimpa no pé / agredia minha nostalgia / arredia / vadia / e eu na esquininha do carnaval passado / pingando franga / espiando minha boa / bundiando com outro pileque / batuque na calada / fedorenta / descalçada / pra nem carinho”
Para terminar os poemas, escolhi “Dois poetas na praia”, de Ferreira Gullar, com reflexões sobre a poesia em meio à festa de Carnaval:
“É carnaval, / a terra treme: / um casal de poetas conversa / Na praia do Leme! // Falam os dois de poesia / e dos banhistas / que nunca leram Drummond nem Mallarmé. / – E lerão meu poema? / pergunta ela. / – Alguém vai ler. / – Pois mesmo que não leia / não vou deixar de dizer / o que vejo nesta areia / que eles pisam sem ver. // E o poeta mais velho / sorri confortado: / a poesia está ali / renascida ao seu lado.”
Por fim, o samba enredo “Lendas e mistérios da Amazônia”, da Velha Guarda da Portela, levado a avenida pela Portela em 1970:
“Nesta avenida colorida / A Portela faz seu carnaval / Lendas e mistérios da Amazônia / Cantamos nesse samba original // Dizem que os astros se amaram / E não puderam se casar / A lua apaixonada chorou tanto / Que do seu pranto nasceu o rio e o mar // E dizem mais / Jaçanã bela como uma flor / Certa manhã viu ser proibido seu amor / Pois um valente guerreiro por ela se apaixonou / Foi sacrificada pela ira do Pajé / E na vitória Régia / Ela se transformou // Quando chegava a primavera / A estação das flores / Havia uma festa de amores / Era tradição das Amazonas / Mulheres guerreiras / Aquele ambiente de alegria / Só terminava ao raiar do dia // Osquindo lá lá / Osquindo lê lê / Olha só quem vem lá / É o Saci Pererê”
A gravação, na interpretação de Chico Buarque, está neste endereço do Youtube:
(a ilustração da coluna de hoje é a pintura “Pierrot e Colombina”, de Beatriz Milhazes)