No livro “A Arte da Guerra”, Sun Tzu dedica uma reflexão fundamental sobre o “Terreno”. De acordo com Tzu, existem seis tipos de terrenos a serem conquistados: a) acessível; b) traiçoeiro; c) duvidoso; d) estreitos; e) altamente vertiginosos; f) distantes do inimigo. Terrenos acessíveis podem ser ocupados por todos os flancos; o traiçoeiro é aquele de fácil ocupação e difícil de ser abandonado; em terrenos estreitos se coloca uma fortificação para minar os invasores; se a distância entre inimigos com força semelhante for grande é desvantajoso partir para o ataque e assim por diante. O terreno precisa ser estudado antes de qualquer ação.
As ações de domingo (8) têm sido desesperadamente caracterizadas por todos os espectros políticos, mas sob dominação da informação da imprensa capitalista. O campo da imprensa capitalista brasileira (progressistas e a direita) procurou apresentar o ângulo acusatório de “terroristas”; “fascistas” e “golpistas”, em uníssono. Esquerdistas isoladamente também têm tentado analisar a situação, o que é natural e deve ser feito, ajuda na decantação das informações. Infelizmente uma grande parcela da esquerda atendeu ao canto da imprensa capitalista, afirmando que estamos diante de uma “invasão do Capitólio versão Tupiniquim”; outros dizendo que há um novo “Euromaidan” (golpe nazista na Ucrânia) e a maioria dizendo que há puro terrorismo.
Terrorismo?
Não se trata de “terroristas” e “fascistas”, também não é o “Capitólio Tupiniquim” ou golpe imediato com uma tomada do Planalto em um domingo com a entrega das chaves aos manifestantes pela Polícia Militar do Distrito Federal. A questão é mais ampla e tem a ver com o “terreno” em questão, que é invisível a olho nu. Como escreveu o analista geopolítico Andrew Korybko, a imprensa capitalista brasileira e dos Estados Unidos combinaram todo o enredo. De acordo com Korybko, o “estado profundo” dos dois países fizeram uma combinação para Biden manter a política de repressão ao trumpismo, a partir de “agendas ideológicas compartilhadas”. De acordo com Korybko, apesar de Lula ser uma liderança “multipolar” (o que chamamos no PCO de liderança nacionalista não revolucionária), o “estado profundo” brasileiro, por dentro da estrutura de Estado, combinou uma ação a partir de mercenários, ao modo do ocorrido no Cazaquistão (aqui interpretação nossa).
A análise de Korybko apresenta algumas evidências, a primeira é a agenda “antiterror”; a segunda é a matéria do The Washington Post intitulada “Come to the ‘war cry party’: How social media helped drive mayhem in Brazil” (“Venha para a ‘festa do grito de guerra’: como as mídias sociais ajudaram a impulsionar o caos no Brasil” – olho da matéria “Pesquisadores detectaram um aumento na retórica agressiva de negacionistas eleitorais em canais de extrema-direita on-line antes dos tumultos de domingo”). O material já estava praticamente pronto, publicado no mesmo dia do acontecimento, e que acompanha a mesma trama do “Capitólio de Washington”.
A terceira evidência é o livre trânsito de membros de alto escalão da diplomacia norte-americana em reuniões no Brasil com o “estado profundo brasileiro” apartado do bolsonarismo. A Casa Branca informou que “o Sr. Sullivan se reuniu com o Secretário de Assuntos Estratégicos, Almirante Flávio Rocha, para expressar apreço pelo progresso no relacionamento Brasil-EUA e reforçar a natureza estratégica de longo prazo da parceria Brasil-EUA. Sullivan também se reuniu com o presidente eleito Lula e membros de sua equipe de transição” (THE WHITE HOUSE). De acordo com Korybko, esse desenvolvimento confirmou o apoio sincero dos EUA a Lula e o desejo de fortalecer suas relações estratégicas com o Brasil durante seu terceiro mandato.
Terreno
Em realidade, quanto a essa parte avançamos na questão do terreno. A invasão do Planalto é uma espécie de “microterritorialidade” dos flancos abertos do grande terreno brasileiro. Os Estados Unidos, por intermédio da CIA e de suas ONGs de direita e de esquerda, e maquinaria estatal de ambos os países, controla as informações sobre o terreno afim de impor uma armadilha às organizações populares e ao próprio Lula.
No caso do terreno brasileiro não haveria, para os Estados Unidos, a necessidade de utilizar “fascistas” e mercenários para a mudança de regime. Portanto, a tese de “revolução colorida” fica refutada, apenas há a necessidade de manter a agenda antiterror (Patriot Act) [1] e a demagógica política que remonta à 1794, na chamada Lei de Neutralidade, que “proibiu” os norte-americanos de travarem uma guerra contra estados em paz com os EUA.
Essa política que antecede a Doutrina Monroe colabora para o uso da guerra assimétrica e psicológica contra o Brasil. A manutenção do poder brando em terreno brasileiro permite que os Estados Unidos permaneçam dominando a política brasileira, pois não há óbice nem por parte da direita, extrema-direita e da esquerda. Os únicos espectros políticos que rejeitam a política dos Estados Unidos seriam a esquerda revolucionária e setores nacionalistas burgueses. Portanto, não haveria necessidade de Washington, neste momento, utilizar o instrumento da revolução colorida contra o Brasil. Para efeito de comparação, no caso ucraniano, os nazistas são mais úteis para ataque à Rússia.
O fator Dino
Considerando a assimetria de poder entre Brasil e Estados Unidos, plausível que a mobilização de recursos ideológicos entre os dois “estados profundos”, temos Flavio Dino como pivô da correia de transmissão atualmente, fomentando um estado repressor antes mesmo dos acontecimentos, apoiando a política de Alexandre de Moraes e do fortalecimento do sistema judiciário contra a população brasileira. Sabendo que Dino é homem da confiança de Washington, Biden utiliza o Ministro da Justiça para reproduzir aqui a ideologia anti-trumpismo e o fortalecimento do advocacy baseado na repressão para crimes contra o patrimônio público, como terrorismo.
Com a finalidade de “caçar nazistas” no Brasil, a política de segurança caminha para uma superestrutura do regime político imperialista, dificultando tanto a atuação de Lula, mas principalmente a militância de esquerda, que não terá respaldo algum da polícia, toda ela essencialmente bolsonarista, como revelou o caso da destruição das três casas do Planalto. A entrada de cabeça da esquerda, no terreno onde Biden traz o Brasil para jogar, poderá ser uma pá de cal aos movimentos sociais, que terão cada vez menos margem de manifestação. Já existem leis suficientes para condenar aqueles que cometeram crimes e pedir mais punição e facilitar o serviço do imperialismo. Na realidade, a única via para combater a ameaça da extrema-direita e do imperialismo é a mobilização popular.
Biden não apoia Lula, mas a manutenção da agenda doutrinária do imperialismo
A plutocracia norte-americana está ciente que Lula não governará além de quatro anos (de acordo com palavras de Lula), por isso prepara o terreno para manter o Brasil sob os mesmos parâmetros “civilizatórios” dos Estados Unidos. Apesar de Lula ser inequivocamente uma liderança nacionalista, não haverá ruptura com a política do imperialismo, embora possa entrar eventualmente em contradição com os interesses dos Estados Unidos e da Europa, o mais importante para Biden é proliferar a criminalização de quaisquer movimentos que abalem a ordem imperialista. Mostrar para sua base que os Estados Unidos estão contra o “trumpismo à brasileira” é mais importante neste momento.
Embora a esquerda pequeno burguesa tenha convocado rapidamente atos para defender Lula, o corte de atuação é dentro dos parâmetros e das raias do imperialismo: “defesa da democracia”; “luta contra o terrorismo”; “viva Alexandre de Moraes”; “temos que proteger as instituições”. Essas palavras de ordem, vazias, cheias de boas intenções, auxiliam a manutenção do estado de coisas, não para a superação da crise. A esquerda não pode pedir mais repressão, embora possa demonstrar ciência de que Lula está ameaçado.
Por último, é fundamental que a virulência (em todos os sentidos), não seja negligenciada pela esquerda, e que não precisamos “perseguir o dinheiro” para saber que há investimento da burguesia, mas, fundamentalmente é um protocolo da CIA para implantar um regime de força pensando o terreno no ponto futuro, sob um governo pró-imperialista. Recentemente, durante a visita de Zelensky aos Estados Unidos, foi anunciado um pacote de investimentos em armas e instituições como a USAID, que atendem a estratégias organizadas desde o campo militar, por onde se organiza o imperialismo.
Referências
DWOSKIN, Elizabeth. Come to the ‘war cry party’: How social media helped drive mayhem in Brazil. Em: The Washington Post. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/technology/2023/01/08/brazil-bolsanaro-twitter-facebook/. Acesso em 9 jan 2023.
KORYBKO, Andrew. Everyone Should Exercise Caution Before Rushing To Judgement On What Just Happened In Brazil. Em: Andrew Korybko’s Newsletter. Disponível em: https://korybko.substack.com/p/everyone-should-exercise-caution?fbclid=IwAR062lvkLtL6XwQKi_4teOOKNKf1xRh9MEJn2AEVyQBTMCt6FWW-y2rGqag. Acesso em 9 jan 2023.
Philadelphia Gazette, 7 June (also reported ibid., 3 June 1794). After further debate, the committee struck out the section, and JM voted with the majority when the House upheld the committee’s action. The House then passed the amended act, which the president signed on 5 June (Annals of Congress, 3d Cong., 1st sess., 756–57; U.S. Statutes at Large, 1:384). Disponível em What’s this? https://fouders.archives.gov/documents/Madison/01-15-02-0250
THE WHITE HOUSE. Readout of National Security Advisor Jake Sullivan’s Travel to Brasilia, Brazil. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2022/12/05/readout-of-national-security-advisor-jake-sullivans-travel-to-brasilia-brazil/
__________
*As opiniões dos articulistas não expressam, necessariamente, as deste Diário.