Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

História em quadrinhos

Adeus a Kevin O’Neill

Kevin O’Neill ilustrou grandes clássicos da história em quadrinhos, entre eles, as “Aventuras da Liga Extraordinária”, com roteiro de Alan Moore.

Kevin Oneill

O quadrinista Kevin O’Neill faleceu no dia 3 de novembro do ano corrente. A tradição dos artistas plásticos das histórias em quadrinhos é bastante rica, em todos os continentes há ilustradores inovando criativamente os traços mais convencionais do gênero. No universo das HQs do ocidente, em linhas gerais, há os quadrinhos infantis, caracterizados pela caricatura, e os quadrinhos para adultos, com traços predominantemente realistas; todavia, não faltam artistas para desestabilizar tais convenções, basta lembrar de Jules Vuillemin, Will Eisner, Robert Crumb, Bill Sienkiewicz, Charles Burns, Lucas Varela, Luiz Gê e, com certeza, de Kevin O’Neill. O realismo do traço correlacionado aos temas supostamente realistas do mundo dos adultos é uma equivalência frágil, facilmente colocada em questão e seriamente danosa quando serve de critério para escolher quais quadrinhos ler ou não ler.

Antes de tudo, o compromisso do traço não é com a realidade das coisas vistas no mundo; os desenhos das HQs não são reproduções objetivas da realidade, mas formas de arte, portanto, elas são simulacros, fazendo com que o desenho preste contas, antes de tudo, ao estilo do artista e suas coerções internas em torno de formas, cores e da disposição de formas e cores seja individualmente em cada quadrinho, seja no conjunto dos quadrinhos dispostos na página, seja na totalidade das páginas da HQ. Contrariamente ao que se poderia supor, imagens excessivamente realistas tendem a neutralizar o papel da expressão plásticas dos quadrinhos, fazendo com que as narrativas se sobreponham às ilustrações; desse ponto de vista, quanto mais engenhoso o ilustrador, mais evidenciam-se os sentidos disseminados na linguagem da HQ por meio das relações entre as imagens vistas e a imaginação.

Nesse sentido, gostaria de recordar dois trabalhos de Kevin O’Neill: “Marshall Law”, em parceria com Pat Mills, e “As aventuras da Liga Extraordinária”, em parceria com Alan Moore, ambas lançadas no Brasil. Em meio aos muitos gêneros desenvolvidos na linguagem das histórias em quadrinhos, um dos mais conhecidos é, sem dúvida, o gênero dos super-heróis; iniciado por volta dos anos 1930, tal gênero encontra seu auge nas décadas de 1960 e 1970 para, no final do século, entrar na fase crítica em que os heróis deixam de ser heroicos para tornarem-se corruptos, fascistas, psicóticos e, inclusive, criminosos, havendo, não raramente, inversões de papeis, cujo melhor exemplo atualmente é o caso do Coringa, passando de psicopata a anarquista político com pretensões revolucionárias.

rPat Mills é reconhecido por sua influência nos quadrinhos britânicos; entre suas obras, são de autoria dele as batalhas dos “Guerreiros ABC”, envolvendo robôs gigantes, as potências imperialistas e a Rússia, e as aventuras do guerreiro irlandês Sláine, passadas na antiguidade céltica e pagã. Sejam robôs, sejam bárbaros, suas histórias estão repletas de sangue, espadas, monstros… em “Marshal Law”, tais tópicos são levados para as histórias de super-heróis. Em um futuro próximo, retoma-se o tema do super soldado estadunidense gerado bioquimicamente para travar as batalhas do imperialismo – o próprio Capitão América e o Hulk Vermelho são inspirados nesses projetos míticos das forças armadas –, entretanto, uns dos efeitos colaterais dessas transformações são distúrbios psicóticos, transformando aqueles super soldados, antes úteis, em ameaças; nessa trama, Marshal Law é, justamente, um desses super soldados, cuja função e policiar seus antigos correligionários.

A ilustração é arte de Kevin O’Neill; contrariamente ao desenho de outra série semelhante a essa, “The Boys”, com roteiro de Garth Ennis, cujo ilustrador Darick Robertson optou por desenhos realistas, em Marshal Law as páginas são graficamente delirantes, seja nos traços, oscilando entre o minimalismo das formas geométricas do talhe das personagens e o expressionismo de suas expressões corporais, seja na articulação dos quadrinhos na totalidade das páginas. Tudo se passa como se os distúrbios psíquicos dos super-heróis renegados, incluindo os de Marshal Law, encontrassem eco no estilo visual alucinado. 

Nossa segunda menção aos trabalhos de O’Neill, “As aventuras da Liga Extraordinária”, embora possam ser inseridas no gênero super-herói decadente, a genialidade de Alan Moore, especialmente aguçada nesse roteiro, dá novas dimensões à própria linguagem das histórias em quadrinhos. Alan Moore é sensível à decadência dos super-heróis já em seus primeiros roteiros, apontando para a uniformização danosa dos roteiros e das personagens; em seu célebre “Watchmen”, relatam-se as desventuras de um grupo de heróis formado por fascistas, um deles, estuprador, outro, admirador do presidente Harry Truman, heroínas próximas de prostitutas, um canalha capitalista, pessoas venais, neuróticas e desajustadas; sua Liga Extraordinária, porém, está bem além disso.

Alan Moore, recuperando os clássicos da literatura fantástica escritos na Europa na virada do século XIX para o século XX, articula um grupo de agentes secretos do governo britânico formado por Mina Harker, personagem do romance “Drácula”, de Bram Stoker; por Allan Quatermain, personagem dos romances de Rider Haggard; pelo Capitão Nemo, capitão do Nautilus, o submarino do romance “Vinte mil léguas submarinas”, de Júlio Verne; pelo par Doutor Jekyll e senhor Hyde, o par de “O médico e o monstro”, romance de Robert Louis Stevenson; e o senhor Harley Griffin, o protagonista de “O homem invisível”, romance de H. G. Wells. Trata-se de outro grupo de desajustados – segundo Moore, Mina é uma mulher perturbada, Allan está viciado em ópio, Nemo tem suas vocações terrorista acentuadas, assim como são acentuados os crimes dos senhores Hyde e Griffin –; tal grupo faz sua epopeia ao longo de várias histórias, desdobrando-se em várias narrativas das quais participam personagens de outros romances, filmes, quadrinhos, entre elas Gulliver, John Carter, Randolph Carter, Auguste Dupin, Sherlock Holmes, o Doutor Moreau, o Agente 007, o Homem de Seis Milhões de Dólares, todos às voltas com Próspero, personagem de Shakespeare, e sua ilha.

Em HQs anteriores, Alan Moore escolheu trabalhar com desenhistas mais próximos dos traços realistas, detalhando, inclusive, que a disposição dos quadrinhos na página fosse constantemente realizada em três linhas e três colunas, em retângulos regulares, buscando, assim, apagar o papel dispersivo das imagens em grades diversas ao longo do texto. Contrariamente, em “As aventuras da Liga Extraordinária”, a maximização do sentido da narrativa manifesta-se no traço repleto de formas e cores de Kevin O’Neill, em que caricaturas são articuladas com traços realistas, em várias grades e enquadramentos, semeando alusões também na expressão plástica por meio de imagens, cenas, referências a outros ilustradores. Em meio a tantas citações, os fãs elaboraram um dicionário das personagens e das imagens disseminadas ao longo da saga, havendo, pelo menos, uma citação por quadrinho.

Escrever sobre Kevin O’Neill está fadado a ser uma tarefa ingrata, embora sempre haja palavras para descrever nossa admiração por seu talento em uma linguagem que, embora com pouco mais de um século de existência, já conta com artistas geniais, tais quais Winsor McKay, George Herriman, Jack Kirby, Guido Crepax, Luiz Gê, Osamu Tezuka; mesmo assim, é impossível descrever apenas com palavras as imagens de Kevin O’Neill e sua genialidade de quadrinista; que a terra lhe seja leve.

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