Na feira de histórias em quadrinhos Des.gráfica 2016, no Museu da Imagem e do Som – o MIS –, na cidade de São Paulo, eu encontrei “Smegma comix” nº1, do Pablo Carranza, editada pela Beleléu, uma editora alternativa da cidade do Rio de Janeiro criada em 2009. Dois anos depois, em 2018, encontrei na loja de HQs Ugra, também na cidade de São Paulo – a Ugra fica na Rua Augusta, 1371, loja 116 –, o “Smegma comix” nº 5. Nesse intervalo de tempo, entre o primeiro e o último “Smegma”, tenho acompanhado as histórias do Pablo, quem tive o prazer de conhecer pessoalmente no evento de HQs Ugrafest 2017, no Sesc Belenzinho – cidade de São Paulo –, dedicado, entre outras atividades, aos 40 anos dos quadrinhos do Francisco Marcatti. Para quem se lembra, o Marcatti é um dos grandes mestres do quadrinho brasileiro alternativo, sendo, igualmente a todo mestre, responsável por toda uma geração de artistas, tais quais o Lobo Ramirez, o Luiz Berger e, entre eles, o Carranza.
Quem me falou do Pablo Carranza pela primeira vez foi o próprio Marcatti quando me apresentou o nº1 da revista em quadrinhos “Lasca de quirica”, uma iniciativa dele; o convidado especial da nº1 é o Pablo com as aventuras do Playboy de Nazaré, um Jesus canalha, quem sai por aí espancando as pessoas. Carranza nasceu em Aracaju, 1986, ele tem 36 anos agora, mas aparenta ser mais novo; talvez pela jovialidade de seu comportamento, ele se conserve assim. Por isso mesmo, seria indevido comparar o Carranza a um “enfant terrible”, pois isso seria menosprezar sua precisão crítica, afirmando ser ela também infantil e não há nada infantil no “Smegma comix”.
No “Smegma” nº1, a ênfase é dada na indústria cultural; na história do Rivalino, a personagem que conduz a revista, há denúncias das canalhices típicas dos programas de prêmios em canais de televisão de extrema direita. Já no “Smegma” nº2, Rivalino monta um fastfood e tem de se haver com a franquia do McDonalds; no “Smegma” nº3, ele vai estudar literatura e, para nosso espanto, as crianças da classe pedem seu auxílio para dar fim nas aulas de poesia. Qual o significado disso? Carranza condenaria o ensino de literatura? Penso que sim, ele condena o ensino e não, a literatura. Para qualquer um atento aos atuais modos de ensinar literatura nas escolas brasileiras, há de concordar com ele; ensinar literatura não é ensinar listas de livros e autores mumificados por pontos de vista, muitas vezes, reacionários.
No “Smegma” nº4, Rivalino comemora o aniversário de seu amigo, o Chupacabra, todavia a história mais contundente é aquela na qual Pablo desenha a versão cafajeste do Jotalhão, o elefante gentil da Turma da Mônica e garoto propaganda de massas de tomate; na história, o elefante mais amado do Brasil faz sexo grupal, embriaga-se, divide cocaína com seus amigos da floresta. Carranza insiste no mundo cão por trás dos quadrinhos, suas melhores histórias são aquelas com as personagens “fofinhas”, por exemplo, a tira do “Smegma” nº3 na qual a Enriqueta da série Macanudos, do Liniers, faz asfixia autoerótica enquanto se masturba. Quando tudo fica “fofinho” demais a ponto de ser alienante, ou quando quase tudo é censurado em nome do politicamente correto, sempre é bom aparecer alguém com a coragem do Pablo Carranza.
Ainda no “Smegma” nº3, na história “Comic Book School’s out for Summer”, em um futuro infeliz, a HQ torna-se leitura obrigatória. Na história, a oficialização dos quadrinhos teria por consequência esvaziá-los de seus conteúdos alternativos, portanto, revolucionários; uma vez transformada em matéria escolar, a HQ correria os riscos de tornar-se dogmática, a criatividade cederia seu lugar para critérios mais normativos e pedantes, inclusive aqueles autorizados pela universidade, cada dia mais reacionária e conservadora.
Por fim, o “Smegma” nº5, da qual comentarei, brevemente, duas histórias: “Os Jetsons em: dia de folga” e “Meu amigo Charlie Brown”, duas paródias de clássicos da TV e dos quadrinhos. No universo das HQs, as tiras dos jornais norte-americanos notabilizaram gêneros, cuja classificação é baseada nas personagens principais, assim, há as tiras de meninos, tiras de meninas, de famílias, de grupos de amigos, de detetives, de super-heróis etc. Esses critérios persistem nos desenhos animados; das histórias de família, “Os Jetsons”, dos estúdios Hannah-Barbera, é uma das piores, a ela falta espírito crítico, reproduzindo a família burguesa estadunidense com todos os seus valores direitistas, nela o marido, embora explorado pelo patrão, nunca se revolta. Já “A Turma do Charlie Brown”, do artista Charles Schulz, é bem melhor, tanto no traço quanto nos roteiros; entretanto, apesar disso, outros quadrinistas, por exemplo Al Capp, já teriam apontado alguns excessos psicológicos na turma. Pois bem, Carranza intensifica tudo isso, aproveita-se dos Jetsons para denunciar as mazelas humanas que assolam as famílias burguesas; seu Charlie Brown é um serial killer, estilo Jeffrey Dahmer.
As edições da “Smegma comix” podem ser encontradas diretamente no site http://beleleu.iluria.com/
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