Política internacional

Uma vez mais, o ‘trotskismo’ em favor do imperialismo na Turquia

WSWS mostra novamente sua incapacidade de compreender o fenômeno do nacionalismo burguês

No artigo Uma vez mais, o ‘trotskismo’ em favor do imperialismo na Turquia – parte 1, mostramos como o portal World Socialist Web Site (WSWS) saiu em defesa de um fantoche da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o prefeito da cidade turca de Istambul, Ekrem Imamoglu. No presente artigo, continuaremos analisando as ideias contidas na matéria do WSWS, partindo da mesma citação debatida no texto anterior:

“A Turquia tem sido sacudida por protestos em massa envolvendo milhões de pessoas desde 19 de março. Esse movimento, que foi desencadeado pela prisão de Ekrem İmamoğlu, prefeito de Istambul e candidato à presidência pelo Partido Republicano do Povo (CHP), de orientação kemalista, pelo governo islâmico do presidente Recep Tayyip Erdoğan, levanta questões políticas críticas decorrentes da profunda crise do sistema capitalista na Turquia e no mundo.”

A farsa dos protestos “envolvendo milhões”, bem como da “orientação kemalista” já foram discutidos anteriormente. Agora, nos voltaremos para o governo de Recep Erdogan.

O WSWS já demonstrou que não era marxista ao ignorar completamente o conteúdo social da candidatura de Imamoglu. Isto é, ignorou a classe que a candidatura representa – o imperialismo. Reforçando o erro, o WSWS apresenta o governo turco meramente como um “governo islâmico”.

É difícil dizer o que seria um “governo islâmico” – e o WSWS tampouco faz questão de explicar. Seria um governo que aboliu os princípios laicos do Estado e estabeleceu a doutrina muçulmana como lei? Seria um governo formado apenas por muçulmanos? Seria um governo que persegue outras religiões?

O WSWS não explica porque o seu objetivo não é apresentar uma caracterização séria do governo turco. Não é fazer uma análise real, mas simplesmente criar uma intriga. O governo turco seria “islâmico” e, por conseguinte, estaria em contradição com os ideias liberais burgueses.

O fato é que não há nada no mundo real que sirva de base para chamar o governo turco de “islâmico”. O Estado turco é laico desde a sua fundação por Mustafa Kemal Ataturk. O partido de Erdogan, o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), não é muçulmano – como é, por exemplo, o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas, na sigla em árabe), que se declara abertamente muçulmano.

Sendo assim, de onde vem a “caracterização” do WSWS? Um texto escrito pelo diplomata Burhanettin Duran, intitulado AKP, Erdoğan e o “expurgo dos islamistas”, ajuda a esclarecer:

“Desde o início, o AKP nunca se definiu como ‘islamista’. Preferiu se autodefinir como ‘democrata conservador’ e utilizou o conceito de ‘civilização’. Nos últimos tempos, acrescentou a isso a ideia de ‘ser nacional e local’. No entanto, em todos os momentos críticos de sua trajetória política de 16 anos, o AKP não pôde evitar ser associado ao islamismo. E acabou sendo rotulado por diferentes intenções e atores como na parábola do elefante descrito por cegos. Na verdade, o termo ‘islamismo’ é usado por seus opositores com conotação negativa e por seus apoiadores de forma sutil e positiva para caracterizar o partido de fora.

Nos dias em que a imprensa ocidental tinha uma postura favorável ao AKP, entre 2002 e 2013, o partido e Erdogan eram vistos como “islamistas moderados”. Eram descritos como atores reformistas desejosos de integração com o Ocidente e que conciliavam o Islã com a democracia. Após a famosa intervenção de Erdogan em Davos em 2009 (‘one minute’) e o ataque ao navio Mavi Marmara, ‘Israel’ e o Movimento Gülen (mais tarde chamado de FETÖ) começaram a utilizar o termo ‘islamista radical’ para descrevê-lo.

Para os kemalistas e o CHP, o AKP desde o início tinha um plano secreto, como o do movimento Milli Görüş, para estabelecer um ‘Estado islâmico’. Após os protestos de Gezi, a mídia ocidental passou a descrever Erdogan como ‘autoritarista islamista’, e mais tarde como ‘fascista islamista’ ou ‘ditador islamista’. Já para seus apoiadores, o AKP é um político que se preocupa com os problemas do mundo islâmico e zela pelos interesses da comunidade muçulmana. Erdogan é visto como um líder capaz de unir os interesses nacionais da Turquia com os sentimentos dos muçulmanos oprimidos da Síria à Somália e a Arakan. É um opositor que criticava a ordem mundial injusta dominada pelo Ocidente.”

A “caracterização” do WSWS vem, portanto, do imperialismo. É uma intriga criada para vincular o governo Erdogan àqueles que já são alvo da propaganda de guerra do imperialismo e do sionismo: isto é, os “terroristas muçulmanos”. Erdogan é “islamita” para “Israel” quando a entidade sionista vê seus interesses contrariados. É “autoritarista islamita” para o imperialismo quando o governo não se dobra aos seus planos.

É verdade que parte dos apoiadores de Erdogan considera que ele atua não como uma liderança laica, mas religiosa. Provavelmente, o próprio Erdogan estimula essa crença. Mas isso não significa, em si, que o governo seja “islâmico”. Na verdade, Erdogan é alvo de críticas de muitos muçulmanos, uma vez que, segundo eles, sua política não condiz com a defesa da comunidade muçulmana. As relações com o Estado de “Israel”, por exemplo, são prova disso. A crítica existe dentro da própria Turquia. O Partido da Felicidade, que se considera uma organização muçulmana, critica Erdogan por não proteger a comunidade muçulmana.

O que o WSWS ignora é que Erdogan é muçulmano em um país cuja população é, em sua imensa maioria, adepta do Islã sunita hanafita. Segundo dados oficiais, cerca de 99% dos cidadãos da Turquia se identificam como muçulmanos. Nessas circunstâncias, é natural que lideranças nacionais manifestem proximidade com símbolos e valores religiosos, mesmo que o Estado seja formalmente laico. No Islã, ao contrário de outras tradições religiosas, a comunidade muçulmana é concebida como uma entidade global e coesa, unida por laços de fé e de solidariedade. Essa concepção implica um imperativo ético de proteção mútua entre os muçulmanos, o que gera uma expectativa, dentro da própria sociedade, de que seus governantes atuem em favor dos interesses da comunidade.

De qualquer forma, se, por parte do imperialismo, a acusação de “governo muçulmano” serve para criar uma intriga contra um governo quando ele se opõe à dominação mundial, por parte dos muçulmanos, a crença de que Erdogan representaria a comunidade serve para dar unidade a um movimento de defesa das nações oprimidas.

A “caracterização” do WSWS é, portanto, um complemento à sua defesa do fantoche da OTAN. É uma intriga que tem como único fim facilitar o trabalho do imperialismo na dominação da Turquia.

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