Intitulado A grande ameaça, o colunista do sítio Brasil 247 Marcelo Zero, publicou artigo, nesta última sexta-feira (14), no qual tece uma caracterização política do segundo governo de Donald Trump.
A tese de sua coluna já está evidente no título: Trump é a “grande ameaça”. Ameaça a quê? Ou a quem? Marcelo Zero responde: à democracia liberal.
Dois terços do texto de Zero consiste da citação de trecho de um artigo recentemente publicado na revista norte-americana Foreign Affairs, de autoria de Steven Levitsky e Lucan A. Way. Zero subscreve integralmente a fundamentação dos autores norte-americanos.
A ideia geral está condensada no seguinte trecho:
“A democracia dos EUA provavelmente entrará em colapso durante o segundo governo Trump, no sentido de que deixará de atender aos padrões para a democracia liberal: sufrágio adulto completo, eleições livres e justas e ampla proteção das liberdades civis.
O colapso da democracia nos Estados Unidos não dará origem a uma ditadura clássica em que as eleições são uma farsa e a oposição é presa, exilada ou morta. Mesmo no pior cenário, Trump não será capaz de reescrever a Constituição ou anular a ordem constitucional. Ele será limitado por juízes independentes, federalismo, militares profissionalizados do país e fortes barreiras à reforma constitucional. Haverá eleições em 2028, e os republicanos podem perdê-las.
Mas o autoritarismo não requer a destruição da ordem constitucional. O que está por vir não é uma ditadura fascista ou de partido único, mas um “autoritarismo competitivo” — um sistema em que os partidos competem nas eleições, mas o abuso de poder do titular inclina o campo de jogo contra a oposição.”
Segundo os autores, não haveria uma ruptura total com a “democracia”, na medida em que se manteriam as eleições, a oposição poderia atuar, etc., mas “o sistema não é democrático, porque os incumbentes manipulam o jogo ao aparelhar a máquina do governo para atacar oponentes e cooptar críticos”. “A competição é real, mas injusta”, concluem.
Eles destacam que um dos fatores principais para a consolidação do “autoritarismo competitivo” de Trump se daria pela “politização e aparelhamento da burocracia governamental”. Aparelhando o Estado norte-americano, Trump teria à sua disposição uma infinidade de recursos (processos judiciais, impostos, isenções tributárias, contratos, licenças, subsídios) que poderiam ser utilizados para enfraquecer a oposição e, assim, minar a “democracia liberal”.
O colunista brasileiro aponta que “a ameaça citada por Levitsky e Lucan A. Way é real”, e “não é apenas uma ameaça à democracia estadunidense; é também uma ameaça às democracias do mundo”.
Democracia vs. Ditadura?
Tanto Marcelo Zero quanto os autores norte-americanos se apoiam, para analisar o significado político do segundo mandato de Trump, na luta entre “democracia” e “ditadura”. Trump seria a expressão do “autoritarismo”, da ditadura.
E quem seria a expressão da “democracia” na visão de Zero e dos autores citados por ele? O texto não menciona abertamente, mas só é possível uma conclusão. Se, a partir da chegada de Trump, a “democracia liberal” foi abalada, só se pode concluir que as forças políticas anteriores a Trump eram os sustentáculos de tal regime. Trocando em miúdos: o Partido Democrata (e o Partido Republicano pré-Trump).
Essa análise não pode deixar de resultar em uma verdadeira mitologia política. Antes de Trump, teríamos uma plena e bela democracia, com oposição livre e competitiva, liberdade democráticas e assim por diante.
Depois de Trump, teríamos a instituição do reino do autoritarismo, no qual o Estado encontra-se politizado e aparelhado e a oposição não consegue atuar. É a tradução, numa versão política, da hollywoodiana luta entre o “bem” e o “mal”. Não se trata de análise política, mas de análise religiosa.
Analisar a situação em termos da luta entre “democracia” e “ditadura”, em abstrato, é adentrar o terreno da mais completa confusão. Isso porque tal perspectiva deixa de lado o critério fundamental da luta política, a saber, a luta de classes.
Como explicar a política econômica de Trump, como, por exemplo, a série de tarifas que ele impôs a vários produtos estrangeiros, sem mencionar os setores da burguesia norte-americana cujos interesses seu governo busca satisfazer? Como explicar sua política internacional, tendencialmente contrária às guerras e intervenções militares mundo afora, sem fazer referência aos setores sociais, especialmente dos capitalistas ligados ao mercado interno, que defendem que os EUA se voltem para dentro, e não para fora do país?
Por fora da luta de classes, a análise da situação política norte-americana se transforma num exercício de feitiçaria e conduz a conclusões práticas verdadeiramente absurdas.
O “inofensivo” Partido Democrata
Se, com Trump, instituiu-se o autoritarismo, temos que concluir que, antes dele, vigorava a plena democracia. Zero e os autores da Foreign Affairs partem dessa premissa.
Mas o que se tem antes de Trump são os governos Biden/Harris, Obama, Bush, etc. São os governos da invasão imperialista do Iraque e do Afeganistão; os governos que instituíram a Lei Patriótica, violando um sem-número de direitos democráticos; os governos dos golpes de Estado recentes em inúmeros países da América Latina, África e Ásia; são os governos que promoveram a Operação Lava Jato no Brasil e as extrema direita fascista na Venezuela; são os governos que sustentaram os nazistas da Ucrânia contra a Rússia; os governos que derrubaram as forças nacionalistas de Gaddafi na Líbia e Assad na Síria; os governos que financiaram e deram sustentação política e militar ao genocídio palestino operado pelo Estado de “Israel”. Esses são os governos que, na visão de Marcelo Zero, deveriam ser qualificados como “democráticos”.
Zero qualifica Trump como a “grande ameaça”, o que significa dizer que o Partido Democrata norte-americano, o partido de Biden e Harris, Obama e Clinton, seria, na melhor das hipóteses, a “pequena ameaça” ou o “mal menor”. Mas como é possível identificar o Partido Democrata, o maior apoiador do nazismo sionista, como a “pequena ameaça”?
É preciso lembrar as lições clássicas do marxismo: os falsos amigos são mais prejudiciais à luta do que os inimigos declarados. O Partido Democrata, definitivamente, é um falso amigo.
A reboque do imperialismo “democrático”
A caracterização de Marcelo Zero a respeito de Trump o leva inevitavelmente a cair no colo da política do imperialismo “democrático”. E já demonstramos que, para o imperialismo, a “democracia” não é senão um artifício para perpetrar os maiores crimes contra os povos explorados do mundo. Na luta para combater o “fascista” Trump, Zero acaba a reboque dos verdadeiros apoiadores do fascismo no mundo.
E Donald Trump, não é ele mesmo um sionista? Sem dúvidas. Não é ele mesmo um político que defende interesses imperialistas, como as provocações contra China e Venezuela? Sem dúvidas. Assim como os “democratas” norte-americanos representa uma política genocida, que se choca com os interesses de toda a população mundial, Donald Trump também é um inimigo dos trabalhadores.
Também defende o massacre na Faixa de Gaza, também é inimigo da esquerda e dos direitos democráticos. Ambos são, no final das contas, meros representantes das classes sociais que vivem da fome, da miséria, das guerras e de toda a desgraça humana.
Para os trabalhadores, a saída não consiste nem em apoiar a extrema direita, nem a burguesia que se diz democrática. É preciso total independência política para os trabalhadores. É preciso construir uma alternativa às duas faces da máquina genocida imperialista. Uma alternativa que declare guerra aberta aos banqueiros, às petroleiras, à indústria bélica e a todos aqueles que controlam o regime político norte-americano com mão de ferro.