Hélio Rocha

Possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é repórter de meio ambiente e direitos sociais em Plurale em Revista e correspondente em Pequim.

Coluna

Tenentes, ontem e hoje: ecos de Pedro Doria no Exército atual

Parte das Forças Armadas brasileiras ainda se imagina como reserva moral da pátria. O discurso de ordem contra a “corrupção dos civis” ou a “ameaça comunista” é reciclado

O livro Tenentes, de Pedro Doria, revisita um dos capítulos mais turbulentos da história brasileira: o movimento tenentista das décadas de 1920 e 1930. Jovens oficiais do Exército, inconformados com a Velha República e suas oligarquias, se levantaram em nome de ideais de moralização e modernização. O tenentismo foi simultaneamente romântico e autoritário: queria democracia, mas pela via da farda. Trazia um impulso de renovação, mas também o germe da tutela militar sobre a política. Ler Doria hoje é revisitar uma história que parece retornar em novos disfarces. O Exército atual, ainda que sob outros contextos, revive a tentação de se ver como guardião da nação, ora insinuando-se como árbitro, ora como ameaça velada à democracia.

O espírito dos tenentes e a nostalgia da farda

Na narrativa de Doria, os tenentes aparecem como jovens oficiais idealistas que não aceitavam a corrupção da Primeira República. As revoltas do Forte de Copacabana, a Coluna Prestes, o levante de 1924 em São Paulo: todas foram expressões de um mesmo mal-estar com a política civil. Mas, ao mesmo tempo, esses militares acreditavam que só eles, iluminados pelo dever e pela disciplina, tinham condições de conduzir o Brasil.

Esse paradoxo ecoa hoje. Parte das Forças Armadas brasileiras ainda se imagina como reserva moral da pátria. O discurso de ordem contra a “corrupção dos civis” ou a “ameaça comunista” é reciclado. O resultado é uma nostalgia perigosa: a ideia de que o Exército pode intervir para “salvar” o país, como se a democracia fosse sempre refém da tutela da farda. O tenentismo ensinou que a política militarizada pode até nascer de impulsos generosos, mas sempre se converte em autoritarismo.

Do tenentismo ao golpismo digital

Se os tenentes dos anos 20 marchavam em colunas armadas pelo interior do país, os militares simpáticos ao golpismo do século XXI operam em outro terreno: a internet. Hoje, o discurso da farda circula em grupos de WhatsApp, lives no YouTube, correntes de Facebook e Telegram. O primitivismo da violência deu lugar ao primitivismo digital — mas a lógica é a mesma: criar inimigos internos, colocar a nação em estado de ameaça permanente e legitimar a intervenção.

A cultura de conspiração e a retórica de que “o Exército precisa agir” têm clara genealogia no tenentismo. O que antes era o jovem Prestes sonhando em marchar contra as oligarquias, hoje se expressa em generais reformados ou mesmo oficiais da ativa sugerindo que a democracia civil é incapaz de se autogovernar. É a atualização de uma mesma lógica: a democracia como concessão das Forças Armadas, não como conquista do povo.

Favela, Estado burguês e o dilema identitário

O olhar foucaultiano ajuda a completar essa análise: a disciplina e a punição do Estado não são aplicadas igualmente. Nas favelas, o Exército e a polícia militar atuam como braço armado do Estado burguês, administrando corpos negros e pobres sob a lógica da suspeição permanente. Essa face da força armada, pouco discutida nos livros de história, mostra que a tutela militar nunca foi apenas ideológica: ela é também prática, cotidiana, inscrita na violência seletiva contra a periferia.

O identitarismo, nesse contexto, aparece como voz de denúncia. Mas enfrenta dilema semelhante ao do tenentismo: pode servir tanto para emancipar quanto para fragmentar. Quando o foco se desloca apenas para disputas de representatividade individual — quem fala, quem cancela — perde-se o alvo estrutural: o Estado que mantém as favelas sob mira e que, em momentos de crise política, volta a flertar com a ideia de tutelar a democracia.

Conclusão: vigiar a farda

O livro de Pedro Doria é essencial porque nos lembra que a tentação autoritária das Forças Armadas não é acidente, mas tradição. O Brasil nunca resolveu a ambiguidade da farda: entre defender a pátria e governá-la. Hoje, essa ambiguidade se expressa na ameaça democrática disfarçada de patriotismo, muitas vezes amplificada pelas redes digitais.

Ler Tenentes no presente é reconhecer que os ecos de ontem continuam. Os jovens oficiais que marcharam em 1922 e 1924 não são tão diferentes dos generais que hoje insinuam golpes ou que silenciam diante deles. O desafio da democracia brasileira é o mesmo: como impedir que a farda confunda disciplina militar com direito de governar?

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a deste Diário

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