O filme que escolhi esta semana chama-se As Sete Oportunidades (Seven Chances, 1925), dirigido pelo cineasta estadunidense Buster Keaton. Trata-se de uma comédia de gags aparentemente leve e despreocupada, mas é muito mais que isso. O média metragem, de apenas 56 minutos, utiliza a tríade trabalho, valor e tempo para narrar uma história que exemplifica a própria subjetividade capitalista e discute a forma do filme de maneira inspiradora.
O enredo acompanha James Shannon (Keaton), um corretor de ações (lembrando que o filme estreou quatro anos antes da crise de 1929) que recebe a notícia de que herdou sete milhões de dólares do avô, uma quantia astronômica para a época. A única condição é que ele esteja legalmente casado até às 19h do dia de seu 27º aniversário. Coincidentemente, é exatamente neste dia que ele recebe a notícia da herança, o que o obriga a se casar imediatamente ou perder todo o dinheiro. Com esse fio narrativo, é iniciada uma corrida hilariante, com cenas que entraram para a história do cinema.
Inicialmente, Shannon tenta propor casamento à mulher por quem está apaixonado, Mary, (algo que ele vinha adiando há mais de um ano), mas a declaração atrapalhada o faz ser mal compreendido e rejeitado. Desesperado e contra o relógio – que aparece como objeto inúmeras vezes -, ele e seu sócio saem em busca de uma noiva que aceite as condições. Através de uma série de encontros, desencontros e muitas peripécias, todas as tentativas falham — até que a história chega aos jornais, e centenas de mulheres aparecem para disputar o noivo. Isso gera uma das sequências que é considerada uma das mais icônicas do cinema mudo: Keaton sendo perseguido por dezenas de noivas furiosas, culminando na famosa fuga entre rochas rolantes em uma montanha. No final, o amor prevalece, e ele consegue se casar com Mary no último minuto.
Neste pequeno ensaio, propomos uma leitura materialista do filme, dividida em dois momentos. Primeiro, observamos como Keaton manipula o tempo cinematográfico, esticando-o ou reduzindo-o, para criar efeitos de suspense e ansiedade, ao mesmo tempo que testa a própria forma fílmica e a capacidade de usar a trucagem cinematográfica para representar a passagem do tempo. Depois, já na diegese, analisamos como a lógica produtiva capitalista invade e se torna mediadora de todos os aspectos da vida. Ao final, resta a imagem de um homem transformado em função, em outras palavras, movido por contratos, prazos e valores.
O tempo como matéria de cinema
Desde os primeiros minutos de Seven Chances, Buster Keaton faz do tempo o motor e o tema da narrativa. Seu personagem descobre que herdará uma fortuna se conseguir casar até as 19h daquele mesmo dia. Esse prazo não serve apenas para acelerar a ação: é uma chave de leitura para o filme inteiro. O que Keaton constroi é uma espécie de comédia sobre o tempo cronometrado da sociedade capitalista, que impõe metas, pressões e prazos inegociáveis.
Mas o mais interessante está na forma como o tempo é manipulado no próprio filme. A perseguição final — em que o protagonista precisa atravessar a cidade e escapar de centenas de noivas — é longa, cheia de obstáculos, e ocupa boa parte da duração da película. Ainda assim, estamos sempre sendo lembrados de que ele só tem “15 minutos” para chegar até a casa da noiva. A conta não fecha e Keaton sabe disso. Pelo contrário: está nos dizendo, com as ferramentas do próprio cinema, que o tempo não é uma linha reta. O tempo do trabalho e da produção é uma ficção que serve ao capital. O cinema, ao manipular essa lógica, mostra o contrário.
Essa escolha formal é política. Keaton usa a linguagem cinematográfica — montagem, ritmo, repetição — para desmontar a ideia de que o tempo é sempre o mesmo para todos. O tempo do relógio, do prazo, da produtividade, não é neutro. Ele pode ser alterado por quem controla os relógios. Além disso, os relógios quebram. Assim, esse tempo do capital serve apenas para controlar, para acelerar a vida, para fazer correr. E o protagonista corre porque o sistema exige.
Trabalho, valor e a mercantilização da vida
A herança milionária que move a trama não é apenas um “motivo” para a comédia. Ela simboliza o valor, um dos fatores que rege todas as relações humanas na era do capital. Para receber a fortuna, o protagonista precisa cumprir uma condição, o casamento, que se torna automaticamente uma tarefa, ou melhor, trabalho. A herança é o pagamento pelo trabalho realizado com sucesso no intervalo de tempo estipulado. Não está mais em jogo a escolha pessoal, o desejo amoroso (apesar de presente) ou um projeto de vida. Há uma meta a ser cumprida, uma função produtiva.
Dessa forma, Keaton mostra que a busca de seu personagem tem a mesma lógica do trabalho: uma tarefa, um valor, um prazo. Ao usar esse enredo para fazer rir, revela também quanto a audiência naturaliza essa forma que ela mesma vive cotidianamente, sem compreender que o retrato é de si mesma. Do avô burguês morto, o legado é a visão de mundo, a ideologia. Ao final, quando Keaton consegue se casar com Mary no último segundo, pois os relógios estão atrasados, temos um final feliz dentro da estrutura romântica possível no capitalismo. É a produção de um resultado.
Buster Keaton (1895–1966) foi um dos maiores nomes do cinema mudo norte-americano. Nascido em família circense, aprendeu desde cedo a usar o corpo como instrumento de expressão. Em seus filmes, buscou representar indivíduos que estão sempre caindo em situações absurdas, nas quais o perigo de vida é evidente, mas que consegue sair com muita sorte do acaso ou de sua própria inteligência – daí o seu humor. Também ficou conhecido pelas cenas de perseguição e de ação, muitas realizadas sem dublês, o que lhe rendeu inúmeros acidentes ao longo de sua carreira. Seus filmes são exercícios cinematográficos e é possível dizer, sem medo de errar, que ele foi o precursor do que o cinema americano se tornaria nas décadas seguintes.
As Sete Oportunidades está disponível no YouTube.