Hélio Rocha

Possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é repórter de meio ambiente e direitos sociais em Plurale em Revista e correspondente em Pequim.

Coluna

Santiago: quando a câmera aprende a escutar

É um filme sobre escuta — mas, antes disso, sobre o erro de não saber escutar

Lançado em 2007, Santiago, de João Moreira Salles, é um dos documentários mais potentes já feitos no Brasil — não pelo que mostra, mas pelo que reconhece tardiamente. O filme é construído a partir de imagens filmadas em 1992, quando João tentou documentar a história de Santiago Badariotti Merlo, mordomo da casa dos Moreira Salles por 30 anos. Santiago era culto, sensível, metódico — uma figura de gestos teatrais, apaixonado por genealogia e pela história das aristocracias.

Mas o documentário que deveria celebrar essa figura ficou engavetado por 13 anos. E o que vemos na tela não é mais o filme sobre ele, mas um filme sobre a impossibilidade de filmá-lo com honestidade. O diretor retorna ao material bruto, e o que era para ser um tributo transforma-se numa reflexão desconcertante sobre classe, silenciamento, poder e culpa.

É um filme sobre escuta — mas, antes disso, sobre o erro de não saber escutar.

O tempo da culpa

O que faz de Santiago um documentário tão único é sua consciência de classe. João Moreira Salles, filho de banqueiro, herdeiro de uma elite econômica e intelectual, se coloca na tela com humildade rara: narrando, em off, os próprios erros. Ele assume que, em 1992, dirigiu o filme com arrogância — controlando Santiago, pedindo repetições, ignorando seus gestos espontâneos. Tratou o ex-mordomo como peça de um tabuleiro estético, e não como sujeito.

A câmera fixa de 1992 é autoritária. Ela espera que Santiago se encaixe na ideia do diretor. Mas Santiago, mesmo subalterno, escapa. Ele vive num mundo próprio, cheio de memórias, pronomes, fantasias e sistemas internos de organização — tudo tratado com um rigor que não é servidão, mas um tipo próprio de nobreza. A classe social o oprime, mas sua subjetividade resiste.

Quando João retorna ao material anos depois, já não consegue ignorar essa desproporção. O que era para ser um filme sobre “um mordomo excêntrico” torna-se uma autópsia do gesto de filmar. E o cineasta, em vez de cortar os erros, os expõe: deixa à mostra os comandos ríspidos, as falas interrompidas, os momentos em que Santiago é ignorado. O documentário então ganha força porque assume uma verdade incômoda: o afeto não basta para romper a hierarquia.

Essa honestidade rarefeita no cinema brasileiro é o que transforma Santiago num espelho não só da elite, mas de qualquer artista que pretenda representar o outro sem antes aprender a escutá-lo.

Empatia marcada pela assimetria

Um dos méritos mais dolorosos de Santiago é mostrar que a empatia de classe pode ser sincera — mas nunca isenta. João ama Santiago, mas só reconhece sua humanidade por completo muito depois, quando o filme já não pode mais ser refeito. Essa sensibilidade tardia é o centro ético do documentário: o diretor não tenta se absolver, mas se coloca como parte do problema.

Isso evoca uma pergunta que ronda grande parte do cinema documental feito por artistas da elite: é possível filmar o outro sem repetir a violência da desigualdade? João Moreira Salles não responde com teoria, mas com prática: mostrando seu próprio fracasso, ele cria um espaço de reflexão que vale mais que mil acertos formais.

Santiago, por sua vez, aparece como figura encantadora, mas também trágica. Vive num universo de reis e imperadores, recontando com obsessão as linhagens europeias que jamais o incluiriam. Sua cultura é sofisticada, mas deslocada. É como se ele tivesse recriado um mundo aristocrático no qual pudesse existir com dignidade. E, ironicamente, ele é ignorado — tanto pela elite à qual serviu quanto pelo cineasta que tentou documentá-lo.

Quando João admite, em off, que foi incapaz de escutar Santiago como ele merecia, o filme se transforma. O gesto de dar a palavra não é mais o suficiente: é preciso dar espaço. Mas esse espaço só vem quando o personagem já não está vivo. A empatia, aqui, não apaga o abismo social — apenas o reconhece. E esse reconhecimento, por mais doloroso que seja, é o que faz de Santiago um documento de rara integridade.

Vale a pena?

Sem dúvida. Santiago é um dos raros filmes que têm coragem de voltar sobre seus próprios rastros. Em vez de apagar as falhas da filmagem original, João Moreira Salles decide colocá-las em cena. E ao fazer isso, transforma o documentário numa aula sobre ética, escuta e responsabilidade.

Ao contrário dos filmes que se afirmam como verdades definitivas, Santiago se apresenta como dúvida: o que é possível mostrar sem dominar? O que é memória quando moldada pelo olhar de quem detém o poder?

João não resolve essas questões — mas ao expô-las com franqueza, cria uma experiência profundamente tocante. O filme não é sobre Santiago apenas, mas sobre o modo como a elite brasileira constrói, consome e descarta seus símbolos — inclusive aqueles mais próximos, mais humanos, mais discretos.

Em tempos de discursos polarizados, Santiago lembra que a verdadeira escuta exige silêncio — e que a sensibilidade de classe não é virtude espontânea, mas aprendizado doloroso. João aprendeu tarde, mas aprendeu filmando. E, com isso, nos oferece um filme que está menos interessado em afirmar, e mais disposto a reparar.

Porque nem todo filme precisa acertar para ser honesto. Mas poucos são tão corajosos a ponto de mostrar, sem cortes, o próprio erro.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a deste Diário

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