O Rescue de 2022 é um disco que nasceu com uma missão impossível: continuar a história de uma banda cujo vocalista original, André Matos, se tornou lenda do heavy metal mundial. Não havia como repetir a aura lírica, angelical e profundamente autoral de André, mas havia como prestar tributo e reabrir caminhos. É exatamente isso que Rescue faz.
Sob a liderança de Luis Mariutti (baixo), com Ricardo Confessori (bateria), Hugo Mariutti (guitarras) e o novo vocalista Alírio Netto, o álbum se constrói como um ponto de virada. Não é apenas continuidade — é uma tradução do Shaman para outro tempo, outro espírito. O lirismo místico e épico da fase Matos cede espaço a um som mais guerreiro, direto e moderno, com swing brasileiro e guitarras que, em muitos momentos, encostam no peso do new metal. É nesse choque entre passado e presente que reside a beleza do álbum. Rescue é, antes de tudo, uma tentativa de erguer-se das cinzas com dignidade — e, na maior parte do tempo, consegue.
A abertura em chamas: “Tribute” e “Time Is Running Out”
O disco começa com a introdução “Tribute”, instrumental carregado de tensão e solenidade. É quase um hino fúnebre, que não deixa dúvida: este é um trabalho consciente da ausência de André Matos. O clima orquestral prepara o terreno para “Time Is Running Out”, primeira grande pancada do álbum. Aqui, o Shaman mostra de cara seu novo espírito. A música tem refrão poderoso, daqueles que poderiam figurar em setlists de estádio, mas não abre mão da densidade. O baixo de Luis Mariutti pulsa como motor de guerra; a bateria de Confessori imprime groove firme, quase tribal, que tira o power metal da rigidez europeia e o mergulha no balanço brasileiro. Alírio Netto canta com força e precisão, explorando bem os médios e graves — não tenta soar como André, e isso é mérito. É um vocal que joga limpo com suas próprias armas, sem forçar comparações. O resultado é um cartão de visitas digno: o Shaman mudou, mas continua vivo.
O mergulho interior: “The I Inside”
Em seguida vem “The I Inside”, talvez a faixa mais intrigante do álbum. É importante lembrar: não é “Eye Inside” (olho interior), mas “I Inside” (o eu interior). Esse detalhe muda tudo. A canção fala de introspecção, de enfrentar demônios internos e de reconstrução pessoal. Musicalmente, ela combina peso moderno nas guitarras de Hugo Mariutti, que aqui flertam com o groove metal, com passagens melódicas que mantêm o DNA do Shaman. O refrão tem algo de hino, mas sem soar artificial. É o tipo de música que poderia dialogar tanto com fãs clássicos de power metal quanto com quem cresceu ouvindo bandas de new metal nos anos 2000. A interpretação de Alírio é especialmente boa: ele equilibra agressividade e vulnerabilidade, lembrando que a grande virtude do Shaman sempre foi não ser apenas “mais uma banda de metal”, mas uma banda capaz de falar de alma, de vida, de dor.
Entre reconstrução e autoafirmação: “Brand New Me”
Outra canção central é “Brand New Me”, um dos momentos mais acessíveis do álbum. Aqui, a ideia de renascimento está explícita: é sobre assumir uma nova identidade, sem negar o passado, mas sem ser prisioneiro dele. O riff inicial tem frescor, com pegada moderna, enquanto a base rítmica mantém o swing característico de Confessori. O refrão é direto, quase pop em sua abertura melódica, mas não perde peso. É o tipo de música feita para ser cantada junto em shows, um hino de superação. É também uma faixa que mostra a versatilidade do grupo: não é preciso soar sempre épico ou sombrio. Rescue também pode ser leve, esperançoso, quase celebrativo. Nesse sentido, “Brand New Me” é o coração otimista do álbum.
A ferida aberta: “Gone Too Soon”
Mas é impossível falar de Rescue sem destacar “Gone Too Soon”, a homenagem explícita a André Matos. Aqui, o tom muda completamente. A música é uma balada carregada de emoção, construída com delicadeza instrumental e vocais sentidos.
Não há exagero, não há teatralidade desnecessária. É um tributo honesto, que reconhece a dimensão da perda. Alírio canta com respeito, sem tentar imitar André, mas colocando sua voz a serviço da memória. O resultado é uma faixa que emociona tanto fãs antigos quanto novos. É nesse momento que Rescue transcende a comparação. O Shaman não tenta recriar André; assume a falta como parte de sua identidade. “Gone Too Soon” é um lembrete de que luto e arte podem caminhar juntos, e que algumas ausências nunca serão preenchidas — mas podem ser honradas.
Embora essas quatro músicas sejam o centro da discussão, vale notar que Rescue tem mais a oferecer. Faixas como “The Spirit”, “The Boundaries of Heaven” e “What If?” mostram a maturidade da banda em explorar atmosferas diversas, da agressividade ao lirismo. Hugo Mariutti, em especial, merece crédito: suas guitarras são modernas, pesadas, mas nunca rasas. Ele atualiza o som sem descaracterizá-lo. O mesmo vale para Luis Mariutti, cujo baixo é presença constante, não mero acompanhamento. É ele quem dá o caráter “guerreiro” do álbum, substituindo o tom etéreo que André costumava trazer com teclados e arranjos líricos. Já Ricardo Confessori cumpre papel duplo: é o baterista que dá identidade brasileira ao som — suas levadas são cheias de swing, longe da rigidez do metal europeu —, mas também a figura cuja saída posterior, em meio a polêmica, deixou o futuro do Shaman em suspenso.
Virtudes, contradições e um fim abrupto

Rescue não é perfeito. Os fãs mais puristas podem sentir falta da sofisticação lírica e da aura mágica que André Matos imprimia em tudo que tocava. Mas isso seria exigir de um disco aquilo que ele nunca prometeu: não se trata de reencarnar o passado, mas de mostrar que ainda havia vida, energia e música dentro do Shaman. A polêmica envolvendo Confessori — acusado de ato homofóbico em redes sociais — acabou por interromper esse recomeço. Foi uma ruptura triste, não apenas para a banda, mas para os fãs, que viram o Shaman perder fôlego em um momento em que estava pronto para se reinventar.
Ainda assim, o legado de Rescue permanece. É um disco que se ergue com coragem, entrega músicas fortes, homenagens sinceras e abre portas para novas leituras do que pode ser o metal brasileiro no século XXI. Rescue é mais do que um álbum de retorno. É um testamento de resistência, de dignidade e de renovação. Alírio Netto mostra que é possível ocupar o posto de vocalista sem ser sombra de André Matos. Os irmãos Mariutti e Confessori provam que ainda tinham fôlego criativo. E o resultado é um disco que não substitui o passado, mas afirma o presente. Músicas como “Time Is Running Out”, “The I Inside”, “Brand New Me” e “Gone Too Soon” não apenas sustentam o álbum, mas se destacam dentro da discografia da banda como símbolos dessa nova fase.
O Shaman poderia ter ido além — e foi a realidade extramusical que impediu isso. Mas Rescue fica como registro único de um recomeço possível. Um álbum que respira guerra, emoção e modernidade, sem nunca esquecer de onde veio.



