Ricardo Rabelo

Ricardo Rabelo é economista e militante pelo socialismo. Graduado em Ciência Econômicas pela UFMG (1975), também possui especialização em Informática na Educação pela PUC – MINAS (1996). Além disso, possui mestrado em sociologia pela FAFICH UFMG (1983) e doutorado em Comunicação pela UFRJ (2002). Entre 1986 e 2019, foi professor titular de Economia da PUC – MINAS. Foi membro de Corpo Editorial da Revista Economia & Gestão PUC – MINAS.

Coluna

Por que elites europeias arrastam o mundo para uma guerra total?

Independentemente da posição de Donald Trump, que opera um governo fraco, essa guerra só existe em função dos interesses dos norte-americanos

Os países europeus continuam apostando na guerra contra a Rússia, feita por procuração, que utiliza a Ucrânia como bucha de canhão, fenômeno bem ilustrado pelo slogan “nós da OTAN, lutaremos até o último ucraniano”. A Europa não tem dinheiro, nem armas, nem seres humanos para travar essa guerra, por isso querem transformá-la definitivamente em uma guerra da OTAN. Nesse sentido, Donald Trump atrapalha, na medida em que, de forma contraditória e errática, tenta interromper a guerra por procuração. A posição da Europa é esquisita, pois, apesar de estar perdendo a guerra, não quer diplomacia e não aceita ceder em nada. Aparentemente, a posição majoritária entre os países da Europa é prolongar ao máximo o conflito, se preparando nesse meio-tempo para aumentar o seu poderio bélico. Que neste momento, aliás, é muito inferior à capacidade da Federação Russa.

Na melhor das hipóteses, o comportamento dos europeus é imprudente, como mostra a história das guerras. Os alemães já esqueceram quem venceu a Segunda Grande Guerra? A França já não lembra do fatídico inverno de 1812? Mas não se trata apenas de imprudência, é também um problema de dignidade. Hostilizar um país vizinho a serviço da maior potência imperialista já é algo muito indigno. Mas fazer isso, utilizando vidas de um outro país como carne de canhão, é muito vergonhoso. Sem contar o fato de que o país hostilizado possui o maior arsenal nuclear do planeta.

Os ucranianos já são, de longe, os maiores derrotados. Perderam território de forma irremediável (provavelmente) e somam 1,7 milhão de mortos entre militares e civis. Além disso, no mínimo 6 milhões de pessoas deixaram a Ucrânia (a estimativa geral está entre 6 e 10 milhões) desde o início da operação militar em fevereiro de 2022. Ou seja, o passivo demográfico já é, hoje, um dos maiores problemas estratégicos da Ucrânia. Além da derrota militar que parece inevitável, a combinação de mortes, deslocamentos, emigração e queda de natalidade tende a reduzir a população por muitos anos, com efeitos profundos na economia, no tecido social e na capacidade de reconstrução do país.

Os russos não têm alternativa senão lutar, porque interpretam o risco de ter a OTAN na porta de casa como uma ameaça existencial real. Aparentemente, as elites políticas da Europa Ocidental estão apostando em uma guerra de grande escala com a Rússia. Resta entender o que a Europa pode ganhar com uma guerra que interessa fundamentalmente ao imperialismo norte-americano e que está ajudando a afundar a economia de seus países-membros.

Esse processo de preparação para uma grande guerra, que tem como matriz os interesses dos EUA, está relacionado a uma grande crise mundial do capitalismo, evidenciada por alguns indicadores. Por exemplo, em praticamente todos os principais países imperialistas pode-se demonstrar estatisticamente que está ocorrendo uma queda da taxa de lucro média nos últimos 40 anos. Além disso, os principais estados nacionais europeus se debatem também com o problema da dívida pública, com destaque para Grécia, Itália, França e Bélgica, todos com dívidas acima de 100% do PIB nos levantamentos mais recentes. O Reino Unido (96,4%) não segue os parâmetros estabelecidos pelo acordo de Maastricht (que estabeleceu os marcos da União Europeia), mas o número indica um endividamento elevado em termos internacionais.

O problema da Alemanha, considerada o motor econômico da Europa, não é o endividamento público (considerado moderado, 62,5% do PIB), e sim a estagnação econômica: o crescimento entre 2022 e 2024 é de míseros 1,3% acumulados, inclusive com recessão, ou seja, decrescimento, nos últimos dois anos. O fenômeno tem algumas causas principais. Com a guerra na Ucrânia a partir de fevereiro de 2022, foi interrompido o fornecimento de gás russo, elevando fortemente os custos de energia e atingindo a competitividade da indústria alemã, em especial as intensivas em gás e eletricidade. As explosões no Nord Stream I e II, em setembro de 2022, uma sabotagem deliberada, agravaram o problema. A Alemanha enfrenta também fatores estruturais, ligados à chamada transição verde (descarbonização), gargalos de digitalização e mudança demográfica. Foi um somatório de fatores que levou à estagnação atual, mas a perda do gás barato da Rússia está no centro do problema, pois elevou custos e contaminou a atividade industrial como um todo. O fato é que sem o gás e o petróleo russos, as empresas alemãs perderam competitividade. As investigações foram encerradas sem apontar os autores das explosões no Nord Stream. Mas, coincidência ou não, os EUA se tornaram a partir de 2022 o segundo maior fornecedor do gás natural liquefeito (GNL) que é vendido na Europa.

Resta refletir, no caso de uma guerra entre Europa e Rússia, como ficaria a posição dos EUA. Independentemente da posição de Donald Trump, que opera um governo fraco, essa guerra só existe em função dos interesses dos norte-americanos. Nem europeus, e muito menos a Ucrânia, teriam condições de fazer uma guerra que já tem 3,5 anos contra a Rússia sem os EUA. Se o presidente dos EUA tivesse poder suficiente e quisesse realmente acabar com a guerra, bastaria cortar a ajuda financeira e militar fornecida por Washington para esgotar a capacidade de guerra da Ucrânia em pouco tempo. Como está bem documentado, os EUA provocaram essa guerra expandindo a OTAN para o Leste e operando para controlar a economia ucraniana.

Nesse processo de guerra na Ucrânia, possivelmente estamos assistindo a maior operação de propaganda imperialista desde a Segunda Guerra Mundial. É uma operação que envolve em todo o mundo partidos políticos, serviços de inteligência, as big techs, ONGs, escolas, universidades, igrejas, todos com a mesma narrativa. Esse processo propagandístico coincide com setores das elites políticas da Europa querendo transformar a Alemanha na maior potência bélica do continente. Em 2024, a Alemanha subiu para a 4ª posição em gastos militares globais, com aproximadamente US$ 88,5 bilhões em defesa, um aumento de 28% em relação a 2023. Os investimentos foram feitos em áreas como defesa aérea e antimíssil, recomposição de munições e aquisição de plataformas de ponta, além de compromissos assumidos com a OTAN para reforçar a sua presença no flanco leste, nos seus membros orientais (Bálticos, Polônia, Sudeste/Mar Negro), esforço para o qual a Alemanha contribui.

Especialistas militares independentes falam em uma estratégia da Europa de prolongar a guerra na Ucrânia por 5 ou 10 anos, com o apoio da OTAN, abrindo outras frentes de batalha, até derrotar Moscou. Há episódios recentes na Europa que corroboram essa tese, como os drones na Polônia, quando ataques russos contra alvos na Ucrânia provocaram “efeitos colaterais” nas fronteiras, como destroços caindo ou violação pontual de espaço aéreo de países vizinhos. Há suspeitas de que esses episódios tenham sido forjados para forçar uma entrada ostensiva da Polônia, escalando o conflito. No caso de êxito desse tipo de estratégia, a Rússia ou seria forçada a retaliar, ou teria que aceitar novas imposições dos vizinhos. As novas frentes de guerra que Moscou teria que assumir diminuiriam também, pela estratégia, a pressão sobre as linhas ucranianas, que estão perdendo a guerra em uma velocidade crescente.

Essa tentativa de fazer o conflito escalar é um claro sinal de desespero dos países que compõem a OTAN, com a iminente derrota na Ucrânia. Mas falta a esses países perceber o que significa a presença de forças da OTAN na Ucrânia para a Rússia. Para os estrategistas russos, e boa parte do povo também, a integração da Ucrânia à OTAN representa uma ameaça existencial muito clara. Qualquer solução que não devolva neutralidade à Ucrânia seria completamente inaceitável para Moscou. É como se mísseis nucleares russos de última geração fossem instalados no México, perto da fronteira com os EUA. Independentemente da opinião que se possa ter a respeito da Rússia, o país não desenvolveu a operação militar na Ucrânia por território ou por qualquer motivação oportunista. A Rússia reagiu ao que considera uma ameaça estratégica (e que é mesmo).

Para a União Europeia e o Reino Unido, a guerra na Ucrânia é como andar de bicicleta: se parar de pedalar, vai ter que admitir a derrota militar, apesar de todos os gastos feitos para derrotar Moscou. A escalada da guerra, dessa forma, funciona como um adiamento da “hora da verdade” na Europa, que é o fracasso político, econômico e militar do continente. A constatação desse fato, com um eventual fim da guerra, poderia significar, dentre outras coisas, a dissolução da União Europeia.

Claramente os EUA ganham se os seus vassalos europeus continuarem com a guerra, em função dos seus interesses estratégicos de enfraquecimento da Rússia. Essa não é, necessariamente, a posição de Trump, que não representa exatamente os setores ligados às chamadas “guerras eternas” que os EUA promovem. Os EUA, além de estarem longe da guerra em termos geográficos, ainda têm a oportunidade de fornecer petróleo e gás para a Europa, além de assistir à destruição da indústria da Europa.

Não se pode entender também a guerra sem analisar os seus principais beneficiários, sobretudo nos setores de energia e defesa. Em energia, as gigantes dos EUA e da Europa registraram lucros extraordinários depois do início da guerra, com a alta de preços e redirecionamento de fluxos, fundamentais para contrarrestar a queda da taxa de lucros, em geral. Em defesa, o aumento da demanda por armas, munições e sistemas de proteção impulsionou grandes indústrias, tanto nos EUA quanto na Europa. As cinco maiores petrolíferas, BP, Shell, Chevron, ExxonMobil e TotalEnergies, acumularam aproximadamente US$ 281 bilhões em lucros desde o início da guerra na Ucrânia (segundo o Operamundi, que reporta esse levantamento da Global Witness). Todas essas companhias são de países-membros da OTAN: ExxonMobil e Chevron são norte-americanas; BP e Shell são britânica e anglo-holandesa; TotalEnergies é francesa. Além dos ganhos bilionários do “top 5” na área de energia, na área de defesa, o impulso de gastos na OTAN e na UE direcionou pedidos bilionários para Rheinmetall, Thales, BAE Systems, Leonardo, Saab e outras, ao mesmo tempo em que as gigantes dos EUA também aumentaram muito o seu faturamento. Esses dados explicam, em boa parte, por que Donald Trump não conseguiu “acabar com a guerra em 24 horas”.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a deste Diário

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.