Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

O grotesco e o identitário em conflito em O Agente Secreto

O filme combina acertos formais e temas urgentes como o ataque à soberania nacional, mas tropeça ao filtrar a história pelos valores do presente.

O cinema brasileiro está em um ano atípico: filmes nacionais têm recebido prêmios importantes, como é o caso de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que ganhou o Oscar de filme estrangeiro e O Agente Secreto, que venceu os prêmios de direção para o cineasta pernambucano Kléber Mendonça Filho e de ator para Wagner Moura no Festival de Cannes. O ator consolida assim uma sólida carreira internacional, com papéis de ponta inclusive em Hollywood. É importante ter em conta que, em tempos de fúria de um imperialismo em completo descontrole, esses afagos podem ser expressões de sedução fácil com objetivos sinistros. Obama dizendo “este é o cara”. 

Mendonça faz parte da geração mais promissora do cinema brasileiro contemporâneo e é um queridinho da esquerda pequeno-burguesa nacional por filmes como como O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019). Agora, ele escolhe a década de 1970 para construir uma espécie de thriller político ambientado no Recife da ditadura militar. 

O protagonista Marcelo (Moura) é um pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco, que retorna à cidade natal, fugindo de São Paulo, por estar envolvido em uma trama de perseguição política que afronta interesses poderosos. O excelente elenco ainda reúne nomes como Maria Fernanda Cândido, Gabriel Leone, Hermila Guedes, Alice Carvalho e Isabél Zuaa, compondo um conjunto de performances memoráveis, um dos pontos fortes do filme, que inclui ainda sólida direção e roteiro excelente. 

No geral, O Agente Secreto acerta ao apontar temas raramente tratados pelo cinema brasileiro como a sabotagem à pesquisa nacional, a perseguição a universidades públicas e o crime de lesa-pátria. No entanto, sua abordagem material desses conflitos está limitada por escolhas de materiais que simplificam as contradições que visa revelar. 

A representação da burguesia, por exemplo, recai no clichê do empresário homem branco nazista, figura que dramatiza a opressão, mas obscurece a lógica real de classe que operava e ainda opera no país. Em 1977, o eixo central da disputa nacional não estava numa suposta pureza racial da elite, mas na integração orgânica entre capital, Estado autoritário e interesses estrangeiros, cujos operadores concretos incluíam tecnocratas, o aparato de justiça e militar, intelectuais convertidos ao regime e oportunistas de toda sorte. Todos tendo em comum aquilo que é uma característica brasileira por excelência: a miscigenação.

Ao insistir nesse enquadramento racializado do inimigo, o filme enfraquece a dimensão da luta de classes, reduzindo-a a um conflito moral entre sujeitos isolados. O mais importante está lá: a luta de classes como uma luta pelo domínio das estruturas do Estado. Porém, diluída na questão moral de acordo com os valores da pequena burguesia de esquerda cirandeira contemporânea, para quem o filme é realizado. 

A fala do vilão sobre “banho de indústria”, repetida por Marcelo, o herói, de maneira crítica e, ao mesmo tempo, revelando o ponto de vista do filme, ecoa esse desajuste, pois é situada num país que estava prestes a consolidar uma base industrial robusta, modelo que inspiraria inclusive o processo que transformaria a China no país que é hoje. A crítica parece brotar não da história material brasileira, mas de uma sensibilidade pequeno-burguesa deslocada da realidade, incapaz de compreender como o desmonte industrial que se avistava com a chegada do neoliberalismo, aprofundado na era FHC e jamais revertido, foi também produto das alianças entre burguesia nacional e capital internacional, ou seja, com a escória do imperialismo mundial. Ao iluminar certos problemas e escurecer outros, o filme ensaia um gesto político importante, mas ainda incompleto: aponta o rumo, mas não encara toda a complexidade das forças reais que moldaram a nação nos últimos 50 anos.

A oposição simbólica entre São Paulo e Pernambuco, que atravessa O Agente Secreto de modo subterrâneo, reforça ainda mais esse empobrecimento material da narrativa. Ao caracterizar o vilão sobretudo como um empresário paulista, branco e industrial em contraste com pesquisadores, famílias e figuras populares majoritariamente pardas ou negras do Recife, o filme desliza para uma lógica identitária que substitui a luta política pela disputa moral entre regiões e fenótipos. 

Essa chave narrativa, que hoje alimenta discursos separatistas nas redes e sustenta a guerra cultural importada dos Estados Unidos, enfraquece a compreensão do país como totalidade histórica. Nos anos 1970, o problema central não era a cor da pele de um empresário, mas a articulação concreta entre burguesia nacional, regime militar e capital estrangeiro. Esta articulação operava por dentro do Estado e não apenas à sua margem. Universidades públicas e empresas estratégicas, como a Eletrobras, estavam no centro dessa disputa, e sabotá-las não era uma iniciativa individual, mas um projeto de classe com operadores variados, miscigenados e distribuídos em todo o aparato estatal e que pavimentariam a hegemonia neoliberal dos anos 1990. 

Ao transformar esse conjunto complexo numa figura moralmente marcada, o “empresário branco de São Paulo”, o filme simplifica a relação de forças e reinstala uma explicação étnico-regionalista que obscurece justamente o que é decisivo: a luta pelo controle do Estado e o projeto de destruição nacional conduzido pela burguesia brasileira submissa aos interesses da plutocracia norte-americana. Trata-se de uma escolha narrativa que, em vez de fortalecer uma visão materialista da história, acaba por reproduzir o mesmo enquadramento fragmentário que fragiliza qualquer projeto nacional.

Ao situar a perseguição a Marcelo no interior de disputas envolvendo patentes, universidades públicas e empresas estratégicas, o filme toca em um ponto essencial da história recente do país: os sucessivos ataques à soberania científica e nacional que fragilizaram o projeto de industrialização, tantas vezes tentado. No entanto, a força desse gesto se perde parcialmente quando o conflito é reduzido à esfera de uma rivalidade pessoal entre o pesquisador e um empresário isolado, como se a destruição da pesquisa fosse obra de um indivíduo e não de uma estrutura de classe. 

A história brasileira mostra o contrário. A disputa pelo Estado brasileiro fará a burguesia entrar em uma órbita de destruição quase suicida com a privatização desenfreada de estatais nos anos 1990. Veja-se o caso da Telebrás, privatizada em 1998, episódio que liquidou pesquisas avançadas sobre semicondutores e entregou ao capital estrangeiro uma das áreas estratégicas que hoje definem a disputa global por chips e inteligência artificial. 

O esvaziamento do conhecimento nacional sempre foi um projeto articulado entre Estado, burguesia brasileira e interesses externos. Ao não inscrever Marcelo no interior dessa engrenagem maior, que é diluída pela necessidade de expor o comportamento fascista do “empresário branco de São Paulo”, o filme perde a oportunidade de expor a materialidade das forças que moldaram o atraso tecnológico brasileiro e de mostrar como a atual dependência científica não é um acidente, mas produto de escolhas políticas deliberadas. Ainda assim, ao menos por mencionar o crime de lesa-pátria e indicar a escala nacional da sabotagem, o filme abre uma trilha que poucos têm percorrido.

Há ainda outra questão decisiva: embora O Agente Secreto se ambiente em 1977, ele é construído a partir das categorias políticas e sensibilidades ideológicas de 2025, portanto, para uma audiência já imersa no imaginário identitário que se tornou dominante no debate público. Em vez de reconstruir materialmente a lógica da ditadura, o filme reorganiza o passado segundo os ideais que caracterizam a esquerda liberal contemporânea, cuja crítica se concentra na cor da pele, na origem regional e na moralidade individual dos agentes, e não na estrutura de classe e nas relações de poder que atravessam o Estado. 

O resultado é um passado filtrado por categorias que não pertenciam àquele momento histórico e que, transplantadas, reduzem a complexidade da disputa pela nação a um embate entre grupos identitários/regionais. Esse anacronismo enfraquece a representação: a ditadura surge menos como mecanismo sistêmico de gestão econômica e política e mais como um cenário estilizado onde indivíduos “opressores” e “oprimidos” desempenham papéis fixos. É um limite que deriva menos da pesquisa histórica e mais da pressão do presente, da necessidade de comunicar-se com um público treinado pela guerra cultural a identificar vilões pela aparência ou pela geografia, em vez de pelas contradições do capitalismo em si. Assim, embora o filme toque em questões cruciais, ele o faz sob o peso de uma luta política empobrecida, que transforma contradições históricas em alegorias simplistas, diminuindo a potência crítica da obra.

O terreno em que O Agente Secreto se torna mais fértil é o modo como incorpora o surrealismo à sua chave política, como técnica de revelação. A perna cadavérica que ganha vida e alimenta o absurdo narrado pelo jornal, o cadáver exposto em pleno Carnaval, a convivência naturalizada entre festa e terror: esses elementos produzem uma atmosfera em que o grotesco emerge do cotidiano como forma de lidar com a violência estatal no Brasil. 

O tratamento das figuras policiais e matadores, lacaios e membros do lupem proletariado nacional, é expressivo em seus diálogos surreais. Neste ponto, o filme introduz aquele que, em minha opinião, é o melhor personagem do filme: o trabalhador que faz serviços de pistoleiro. Ao contrário dos outros que são apenas cínicos, ele está inserido brutalmente na lógica da exploração e a sua violência alugada também representa a explosão de uma violência de classe em latência. Teria sido bom ver mais sobre este personagem.

Nesse ponto, o surrealismo político, as irrupções de absurdo e a composição quase ritual da violência dizem mais sobre o país do que as falas programáticas, que por vezes reduzem a história a slogans, como é o caso da cena do jantar. A justaposição entre festa e morte, entre o Carnaval e o cadáver, entre o matador trabalhador e o policial inepto, é elucidativa sobre a estrutura material da violência brasileira. Lembrando que o Carnaval é hoje uma manifestação política das mais importantes em um país sem o povo nas ruas por falta de movimentos sociais legítimos.

À luz dessas comparações, O Agente Secreto revela seu lugar específico na conjuntura cinematográfica atual: assim como Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, e Uma Batalha Após a Outra, de Paul Thomas Anderson, expressa, de modos distintos, uma dificuldade recorrente do cinema contemporâneo em representar o passado sem submeter sua complexidade à sensibilidade política fragmentada do presente. No caso de Salles, a ditadura aparece como drama individual da classe média, eficaz como experiência emocional, mas limitada como análise histórica, servindo mais a uma pedagogia moral antibolsonarista do que a uma reflexão profunda sobre soberania nacional e desenvolvimento interrompido. 

Em Anderson, o retorno aos anos 1970 nos Estados Unidos também opera sob o signo da estilização: pseudo-revolucionários de esquerda e traidores ocupam o lugar de uma luta que jamais existiu como tal naquele país, e a violência surge filtrada pela lógica identitária da guerra cultural americana. Mas há uma discussão que vale o filme – ao escolher o jovem trans ou a pseudo-revolucionária negra como delatores, o cineasta evidencia o que todos sabemos: a cultura identitária pode servir aos mesmos interesses que o matador profissional ou o policial inepto, ou seja, à manutenção da ordem, por vias diferentes obviamente. Não é a cor da pele ou a orientação de gênero que determinam a consciência de classe e a prática política revolucionária.

O Agente Secreto avança ao introduzir o tema da lesa-pátria, sugere a sabotagem da pesquisa científica e toca em contradições reais, mas não consegue escapar completamente dessa gramática do presente que reduz estruturas políticas a perfis fenotípicos, regionais ou morais. No fim, os três filmes apontam para um mesmo sintoma: a dificuldade do imaginário político da esquerda pequeno-burguesa em formular uma crítica verdadeiramente materialista do Estado, da burguesia e do capitalismo. Ainda assim, a existência desses filmes indica que algo começa a se mover. Se reconhecermos seus impasses e recusarmos as simplificações identitárias que hoje colonizam o debate, talvez seja possível construir, no cinema e fora dele, uma representação mais profunda do Brasil: um país cuja história recente exige, mais do que nunca, uma crítica que recoloque a luta de classes, ou seja, a luta pelo domínio do aparato estatal, e a soberania nacional no centro da narrativa.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.